sexta-feira, 20 de setembro de 2013


TI MANEL DA CRUZ
    

     É rara a vez que vou à Mata e não me cruzo com Ti Manel da Cruz, que, se ainda os não tem, deve estar muito próximo dos noventa anos. Habituei-me a vê-lo passar à nossa porta, ora a pé, ora montado na sua carroça. Tem sempre mais uma palavra que os simples boa tarde ou bom dia; e, por isso mesmo, tenho por ele estima e simpatia.
     “Ó João, hoje tens cá o teu Manel?”. Era uma constatação e uma pergunta retórica, porque eu estava ali à mão de semear. Mas dirigia-se primeiro a meu pai, um dos seus companheiros de sueca, no café de Manuel Domingos Barata, o Japona. E só depois, me dirigia directamente a palavra: ”Tás bom Manel, pois sim?”
     Ainda agora, já tão avançado na idade, continua direito que nem um fuso, em cabelo ou de chapéu na cabeça, sempre muito cordial e digno. O que já não tem, porque o tempo tudo traz e tudo leva, é força para pegar na bandeira e, com muito garbo, fazer toda a procissão. Foi voluntário para levar a bandeira, em todas as festas da Mata, desde que não houvesse promessa a cumprir ou que outro homem manifestasse o desejo de levar aquele adorno de difícil manuseamento, nos dias de festa com vento. Hei-de descobrir uma fotografia para ilustrar o que aqui fica dito.
     Nas cartas, gostava de ser parceiro de meu pai, mas também jogava contra ele. Nunca tive notícia de qualquer discussão de monta e preservaram a amizade até ao fim. Lembro-me de Ti Manel da Cruz passar e dizer: “Ó João, está cá o teu Manel, hoje não jogas?”. Meu pai apressava-se a sossegá-lo: “O meu Manel vai-se já embora. Eu já lá vou ter”. E ia, muitas vezes, ainda antes de eu partir. O gozo de puxar pelas orelhas às cartas falava mais alto, o que é compreensível, porque era o único entretém destes homens simples.
     Ti Manel da Cruz, a quem o povo alcunhou de Farinheira, ainda está para dar e durar. Se a saúde não lhe pregar nenhuma partida, é bem capaz de chegar aos cem. Oxalá que sim!

Sem comentários:

Enviar um comentário