domingo, 2 de março de 2014

A JUGOSLÁVIA...




Foto WIKIPEDIA

Santa Iria de Azóia, 27 de Setembro de 2000 - Neste mundo unipolar, Milosevic está tramado. Não porque os seus sucessores sejam melhores, não porque nas incontáveis repúblicas balcânicas os dirigentes sejam indivíduos de convicções democráticas, mas, sobretudo, porque há que arrasar todos e quaisquer resquícios de uma ordem anterior.
     As pressões dos senhores do mundo são intoleráveis. Os americanos arrogam-se o direito de dizer aos povos quem devem escolher ou rejeitar. Franceses e ingleses, peões europeus do imperialismo americano, vão ladrando às ordens do dono. Com a compreensão de antigos partidos socialistas e trabalhistas, os americanos impõem um modelo de exploração dos povos, impondo previamente meia dúzia de títeres nos altos cargos dos estados. Podem até ser crápulas e alcoólicos inveterado como Ieltsin. O fundamental é que triunfe a Coca-Cola, o McDonalds e a Pizza Hut.
  Os nossos presidentes e primeiros-ministros tornaram-se simples regedores de paróquia na chamada era da globalização. Caminhamos para um regime de partido único à escala universal. Estamos a caminho da idade média.

     Milosevic está tramado.

AGORA É A UCRÃNIA



Santa Iria de Azóia, 25 de Setembro de 2000 - A Jugoslávia foi a votos. Dois campos previamente definidos como nas religiões: o de Kostunica, representante do Bem; e o de Milosevic, representante do mal.
     É lamentável que os nossos meios de comunicação social surjam tão alinhadinhos com as forças mais retrógradas do planeta e persistam em ver o mundo permanentemente a preto e branco. Milosevic é seguramente um tratante. E os seus opositores serão melhores? O primeiro Presidente da Croácia, entretanto falecido, era mais democrata e menos facínora que o actual Presidente da Jugoslávia? Os kosovares, que os sérvios mataram às centenas de milhar, têm-se revelado detentores de alguns valores minimamente respeitáveis? Adiante que se faz tarde.
     A nossa comunicação social, alinhadinha e obediente aos ditames da benfazeja, honrada e limpa América, colabora em todos os embustes. De resto, o fenómeno estende-se a todo o mundo ocidental. Os cachorros vão comer à mão do dono.


MARTIN ET HANNAH



Santa Iria de Azóia, 18 de Setembro de 2000 - Continuo a ler, interessadíssimo, o romance Martin et Hannah de Catherine Clément. Martin é o filósofo Martin Heidegger, indubitavelmente um dos espíritos mais brilhantes do séc. XX. Hannah Arendt é uma intelectual judia, antiga aluna e amante do pensador alemão. A outra personagem do triângulo amoroso é a legítima de Heidegger, Elfride, que, apesar de quase tudo saber da duplicidade da vida amorosa do marido, desde 1950, aceita disputar até ao fim não o papel de melhor amante, mas o de melhor adjuvante na construção de uma obra filosófica.
     Catherine Clément, inclemente com Heidegger e sobretudo com Elfride, traça desta o retrato de uma mulher de formação universitária que adere ao nazismo convictamente. Luterana, Elfride continuava luterana de alma. Obstinada, de olhos abertos para a degradação da Alemanha, para a cloaca de Berlim onde acabavam os detritos da República alemã. Era preciso pôr fim a isto, reduzir a podridão a cinzas e regressar aos verdadeiros valores de perfeição que Martin incarnava: o amor pelos cimos, a neve límpida, a natureza, a saúde, o ar puro e o alto pensamento. Até aqui, dir-se-ia que a legítima de Heidegger pugnava por valores perfeitamente razoáveis. Quem, ainda hoje, não aceitaria os valores acima enumerados? O problema era outro. Elfride não aceitava o fim do império austro-húngaro. A República e a democracia eram as fontes de todas as enfermidades. Principalmente, porque representavam o diktat dos vencedores e a humilhação da Alemanha.

      Vejamos como Catherine Clément não deixa margens para qualquer ambiguidade: Do fundo do seu coração, Elfride esperava a borrasca que varresse os miasmas da democracia. Limpa dos travestis berlinenses, das prostitutas, dos comunistas, dos banqueiros, dos artistas. A Alemanha purificada de judeus. Para varrer com a decadência, era preciso um vento muito forte e selvagem.  Esse vento forte e selvagem era o “pequeno austríaco”. Ganharia eleições democráticas em 1933 e instauraria o III Reich. Até aqui Elfride estivera sempre à frente de Martin. Agora era o jovem professor que adere aos ideais hitlerianos e aceita, ainda que só durante dez meses, uma reitoria.

     Catherine Clément, professora de filosofia com vasta obra publicada, parece, muitas vezes, condescendente com Heidegger. Parece querer transferir o odioso da adesão do filósofo ao nazismo para a pessoa de Elfride. Parece. Porque o mesmo Martin, pensador católico e entusiasta de Hitler, afinal de contas, até tinha, desde 1924, uma amante judia. Vou continuar a ler o livro.