sexta-feira, 30 de agosto de 2013

OS POETAS
Para o Manuel Vaz

 

     Com palavras constroem verdadeiros monumentos: precários, às vezes; às vezes, teimosamente resistentes. Alguns chegam até nós, vindos do fundo do tempo, frescos e incorruptíveis; outros, igualmente frescos, trazem a pequena mossa da corrupção em notas de rodapé.

     Todos esses monumentos – de que os poetas são arquitectos e pedreiros, engenheiros, pintores, carpinteiros -, se falar pudessem, dariam conta de inumeráveis batalhas ganhas com galhardia e perseverança, desde o surgir da pura ideia até ao assentamento da última pedra.

     Acreditai-me, ó gentes profanas!, que não é fácil recriar permanentemente o mundo com as humílimas palavras, para vo-lo servir pleno de harmonia em esplendorosas  bandejas de oiro.

 

TI ZÉ BALHAU

Ti Zé Balhau, ou ti Zé Balhau Chichinha, é uma e a mesma pessoa. Surdo que nem uma porta era desconfiado como todos os surdos, mas nem por isso deixava de ser uma pessoa popular e divertida. Ainda joguei muitas tardes com este antigo comerciante e industrial, quando ele já ia nos oitenta. Teria hoje, feitas as contas por alto, cerca de cento e trinta anos.

      Quando o conheci, ou melhor dizendo, quando me dei conta da sua existência, só bebia cerveja, muita cerveja, que era a bebida da sua predilecção. No entanto, dizia-se que bebera muito vinho e muita aguardente. Seja como for, tinha, já avançado na idade, uma destreza mental e física que faziam inveja a gente muito mais nova.

     Andava sempre de casaco e colete – e também o inevitável chapéu-, mesmo nos dias quentes de verão, porque, dizia, o que tapa o frio também tapa o calor. Quem o quisesse ver era no café do Prata, que depois foi do Bicho, seguidamente do Zé Isidoro e mais tarde do Manel Sapateiro, até fechar as portas. Não sei ao certo como foi o fim de Ti Zé Balhau, mas o nosso homem terá chegado aos noventa.

     O seu jogo preferido, e creio que único, era a bisca de três. E jogava de tal modo bem, que, ganhar-lhe, era proeza de monta. E como ganhava e bebia todas as partidas jogadas, imagine caro leitor, a quantidade de cervejas médias diárias que o nosso ancião escondia por debaixo da camisa. E ria, ria, gozando por ganhar e por os outros terem de pagar a cerveja. Diga-se, no entanto, que quando perdia, nunca se recusava a pagar.

     Homem de muitos negócios, foi proprietário de um lagar de azeite, de varas, puxado por uma junta de machos. Era pegado ao forno que foi do professor falcão, que ainda lá está, e lembro-me de ter estado no seu interior antes da demolição. Há muitos anos, claro. Apesar de ter vários filhos e muitos netos, Ti Zé Balhau foi um homem muito independente e com ideias próprias.

     No final da vida, com o aparecimento das máquinas de café, procedeu à substituição da loira cerveja pela bebida negra. E creio que terá sido o café que acelerou o seu perecimento.

     Deixou o seu nome associado à expressão: “Chichinha Zé Balhau da Mata”. Diz-se, localmente, ou dizia-se, para designar uma coisa boa ou algo que cai bem.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013


AO CONTRÁRIO DE REIS

 


     De mãos entrelaçadas, vamos, Marta, até à beira rio. E aproveitemos, quais hedonistas inveterados, a mansidão da tarde para nos amarmos, sôfregos, como velhos faunos, que as nossas vidas são breves e o tempo muito veloz.

     De mãos dadas, vamos, Marta, até à beira rio. E saibamos desfrutar todos os instantes, e, juntos, ouvir apenas o apressado bater dos nossos corações, indiferentes ao rio e a quem por nós passa.

    Amemo-nos, pois, uma e outra vez e outra ainda, para, quando o tal barqueiro vier separar-nos, de nada possamos lamentar-nos, nem de Amor sermos devedores.

     De mãos dadas, vamos, Marta, até à beira rio.

 
in "AO SABOR DOS DIAS, no prelo.
 

ROUBEI UM VERSO



 

Há dias,

Despudoradamente,

Roubei um verso

Ao poeta Albertí.

 

Coisa sem importância

Dirão os (des)entendidos

Que pululam

Por aí.

 

Roubar, meu amor,

Só na loja das flores,

Uma rosa

Para ti!

quinta-feira, 22 de agosto de 2013


 

DISCURSO
 

     Muitos de nós que temos mãos e temos pés, muitos de nós que fazemos adeus aos comboios nas estações, muitos de nós que passeamos o conformismo pelas ruas da cidade, muitos de nós, um dia, talvez um dia, saibamos quão inúteis foram os nossos braços, as nossas pernas, as nossas bocas, os nossos ouvidos e os nossos cérebros.

     Talvez um dia, quando violarem o silêncio da nossa inutilidade e já for demasiado tarde, vejamos então como eram irreais os nossos primorosos raciocínios.

     Nesse dia, não haverá lugar para lágrimas e lamentações. Nesse dia, morreremos como cães: sem palavras, sem sonhos, acéfalos, loucos.
 
 
in AO SABOR DOS DIAS, no prelo

 

 

UM DIA

 
Um dia
Tropecei num livro

E fiquei agarrado.

 

Ao primeiro
Outros livros

Se seguiram.

 

Sentei-me então
E um a um

Fui-os folheando.


Lendo sempre
Com a avidez

Dos amantes.

 
Deixei correr

O tempo,

Inexoravelmente.

E agora
Só quero ficar

Sentado.

Até quando?


Até quando

É a pertinente
pergunta
DAR

                      Para a Mª José Mendonça
 

 
Dar...
Eis um verbo
dificílimo
de conjugar.

Mas ainda há
quem o saiba dizer
do princípio
ao fim
sem hesitação.

E subitamente,
um dia de Inverno
até parece Verão!

 

terça-feira, 20 de agosto de 2013


ANTÓNIO VICENTE (PTCHIRRA)

 


     Hão-de dizer os meus fiéis e incondicionais leitores da Mata que só escrevo acerca de defuntos. Hoje, para vossa surpresa vou falar de um homem vivo, de quem sou amigo desde criança.

     Por isso recordo com alegria, um episódio passado há mais de cinquenta anos, quando eu quis aprender a arte de lavrar a terra com arado e macho. António Vicente, o Ptchirra, a instâncias minhas, concordou em dar-me aulas práticas, mas desisti rapidamente, porque mal aguentava a rabiça do arado de ferro e os regos saíam tortos. Foi no Salgueirinho, mas já não saberia ir ao local.

     Nunca mais falámos da minha curta aprendizagem de lavrar, apesar de termos falado muito durante toda a vida. Este homem, já a caminhar para os oitenta, bebeu, até muito tarde, excessivamente; todavia, não consta que tenha perdido dias de trabalho por razões etílicas. Às vezes, era teimoso e repisava as conversas, mas sempre tive a paciência necessária para o ouvir até ao fim ou para dele me despedir sem ofensas. E assim temos preservado a nossa velha amizade.

     Com o grão na asa e um brilhozinho nos olhos, ouvi-o dizer vezes sem conta: ”Não há cá na Mata uma família como a do velho Canuna”. Referia-se ao meu bisavô Francisco Lucas, pai de muitos filhos e outros tantos enteados, que teve taberna na rua do Arrabalde, ainda muito antes de eu ter nascido. Era o pai de minha avó Maria à memória da qual já dediquei poemas.

     Na verdade, a observação de António Vicente faz todo o sentido. Entre os netos e bisnetos de Francisco Lucas há uma caterva de licenciados, em quase todas as áreas do saber: engenharia, economia, matemática, gestão, direito, letras, medicina e outros técnicos de saúde, música, etc. Uma ínclita geração. Ou duas ou três ínclitas gerações. Alguns já sem ligação há Mata e sem saberem que têm na ascendência um bisavô ou tetra-avô de nome Francisco Lucas, o tal velho Canuna de que fala o senhor António Vicente.

     Sim, o senhor António Vicente - que ora me trata por Manuel, ora por senhor Manuel - merece-me igual forma de tratamento. Estou a vê-lo, com aquele seu sorriso maroto, a perguntar-me: “estás cá Manuel?”.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013


TI BARATA (CARECA)
 

     O meu avô Manuel Barata, que a Mata inteira conhecia por Ti Careca, era um homem pequeno de altura e magro. Usava chapéu preto de feltro que lhe tapava a calva, que esteve na origem da alcunha e até de uma cantiga burlesca que em tempos se cantou na aldeia. Todos os meus tios herdaram a alcunha. Sorte diferente teve o meu pai, que herdou a alcunha Doutor de um tio de meu avô.

     Ti Careca, Manuel Barata de seu nome completo, insistia em usar o apelido Martins para se distinguir de outro Manuel Barata, bom carpinteiro, que era seu vizinho. Foi ganhão e trabalhou no campo, enquanto a saúde lho permitiu. Depois, passava o tempo atrás de uma cabra e duas ovelhas e tratava da horta na Tapada da Bemposta. Como coxeava muito, gritava à cabra e às ovelhas, que até parecia que queriam fazer dele gato-sapato. Ajudei-o muito na rega da horta e ele descascava figos de piteira para mim.

     O meu avô era um homem muito dado a crendices; porém, raramente ponha os pés na igreja. Tudo o que lhe acontecia na vida, nomeadamente nos anos finais, era obra de espíritos e entidades afins. Até a tosse do tabaco e a pieira eram atribuídas às almas dos nossos antepassados.

     De madrugada, nos frios invernos da Mata, meu avô vinha tossir para o balcão da sua casa. E eu ouvia-o a tossir e a dizer a minha avó: “Maria, estás a ouvi-los?”. Não consultava o médico, mas acreditava em bruxas e soldadoras. Quantas vezes foi ao Pego, ali para as bandas de Abrantes, à procura de quem lhe esconjurasse os espíritos!

     Tenho boas recordações deste homem frugal, que apreciava mais um cigarro do que uma fatia de pão. Não tocava quase em vinho, mas consumia aguardente produzida por minha avó. É que da economia doméstica era a minha avó que tratava, porque o meu avô se demitira, quando deixou de trabalhar, de dar ordens a quem quer que fosse. Comia pouco e mal, levava o seu pequeno rebanho a pastar, regava a horta e fumava. E todos o tratavam com carinho.

     Sabia ler, mas não sabia escrever. Apesar de tudo, não deixava de ser extraordinário, quando o analfabetismo atingia a quase totalidade da aldeia. Nas vias-sacras, quando se faziam as paragens obrigatórias, era o meu avô que lia as orações. Porém, como se dava mal com as esdrúxulas, em vez de pérola lia “peróla”.

     Apesar de ser meu avô e padrinho de baptismo, nunca me terá dado um beijo. E só eu sei como gostava do meu avô!

domingo, 18 de agosto de 2013


TI MANEL JAPONA

 


          Falava quase sempre num tom baixo e pontuava a conversa com notas de humor – ou, de sarcasmo, às vezes -, que nem sempre agradavam aos interlocutores. Manuel Domingos Barata, filho de Joaquim Domingos e Joana Barata, era primo direito de meu pai. Apesar de primos, tinham os seus conflitos, mais ou menos longos; porém, acabavam sempre por se reconciliar.

     Ti Manuel Domingos, a alcunha não era usada na sua presença, foi dos primeiros proprietários de uma motorizada, na nossa freguesia, que lhe conferia um estatuto, não sei bem precisar do quê, mas, no mínimo, de possuidor de uma motorizada. Exerceu a profissão de pedreiro e chegou a ser pequeno empreiteiro. Mas o seu feito maior foi ter ousado abrir o primeiro café da Mata, que teve para a nossa terra a importância que o “Florian” ou a “Lavena” terão tido para Veneza. E quase coincidentemente com a advento da televisão em Portugal.

     O café do primo Japona era um espectáculo: tinha mesas e cadeiras, televisão e uma freguesia ruidosa e divertida. Foi neste café de aldeia que vi as primeiras e inesquecíveis séries, nomeadamente o Bonanza, aos sábados à noite, o Rim-Tim-Tim e o Zorro, noutros dias da semana. Também o Mr. Ed, ou seja, o cavalo que falava, mas muito mais interessante que certas cavalgaduras que actualmente ocupam espaço televisivo. E ainda o humor que se ia fazendo e as variedades. Ah, ainda me recordo do Camilo de Oliveira quase novinho em folha!

     Depois foi a emigração, onde nos encontramos todos, em Sceaux. Lembro-me perfeitamente de ter ido à rua de Vaugirard, em Paris, onde havia uma dependência do ministério do trabalho, levantar-lhe a carta de trabalho. Coisa de pouca monta, mas que calou fundo neste carácter habitualmente fechado, que deixava sair, amiúde, uma graça, um dito jocoso, uma pergunta pertinente. Creio que foi comigo e com os meus pais ao 29º Salon de L’aéronautique du Bourget, onde, também eu havia de ver, pela primeira e última vez, solo lunar.

     Regressado de França, reabriu o café e por ali permaneceu até ao fim. A nossa amizade nunca conheceu altos e baixos, porque, antes de mais, nos respeitámos sempre mutuamente. O meu pai chegava sempre apressado, quando íamos tomar café. O primo Manel Japona estendia-me a mão, e perguntava: “Tás cá? Tás bom?” Aviava os cafés e perguntava à minha filha:” E tu Filipa, o que queres?”. Normalmente queria uns chocolates (táxi), de qualidade duvidosa, que se comercializavam nos cafés de aldeia. Por vezes dava-lhe um chocolate, sem nada perguntar e dizia: ”Este sou eu que to dou”.

     E por ali ficou, até ao fim, perseverando no trabalho do café e no amanho das suas terras. O café, ainda hoje, em sua memória, é o café BARATA.

   

 

    

quarta-feira, 14 de agosto de 2013


TI ZÉ MEXE

      Tinha a necessidade e o vício do trabalho. Por isso mesmo, acertou em cheio, quem lhe colou a alcunha “Mexe”. Ti Zé Mexe era o pai de minha mãe, sabia ler e escrever, mas nunca passou de trabalhador do campo, lagareiro e mestre de lagar de azeite. Um trabalhador letrado que ceifou muito, trigo e outros cereais, que malhou muito, milho e feijão, que podou muitas árvores e limpou muitas oliveiras.

     Tive sempre uma afeição especial por este homem, a quem pedia a bênção a instâncias de minha mãe, mas que tudo retribuía com austera generosidade. “Anda cá”, dizia ele aos domingos, quando me via. Eu aproximava-me e dizia: ”Guarde-o Deus, avô” ou “gaurdesdeus”, que era assim que se dizia na Mata. Meu avô tirava uns tostões do seu porta-moedas de orelhas, comprado na feira dos Santos, em Alcains, e dizia: “Toma, é para amendoins” e sorria e retomava o seu lugar no grupo de amigos.

     Nunca foi protagonista de uma proeza para a posteridade. Trabalhou, trabalhou, trabalhou, teve dois casamentos, quatro filhas e a meia dúzia de netos, ou seja, nada que possa fazer sair um homem da turba. Mas era respeitado pelas suas qualidades de trabalho e honradez. A semana tinha seis dias e meio de trabalho e meio dia de descanso, ainda assim, o tempo suficiente para uma passagem pelas tabernas da Mata, que, na minha meninice, eram muitas, e para uns copos bem bebidos, que às vezes deixavam marca na alvura da camisa dominical.

     Quando entrava na sua casa e ainda mal tinha respondido à pergunta “Quem lá vem?”, já o meu avô dizia à minha avó, que não era a minha avó de sangue, mas que sempre me tratou como neto e eu como avó: ”Ó Maria, dá uma fatia de pão aos cachopos”. Os cachopos eram os seus dois netos varões, ou seja, este vosso amigo e o Zé Capinha, que é mais conhecido por Zé Maceiras. É certo que nunca passámos fome, sempre houve pão e conduto nas nossas casas, mas aceitávamos o pão com queijo ou com chouriço, que era uma forma outra de mostrarmos o nosso afecto ao nosso avô.

     Produzia algum vinho, sem quaisquer tratamentos, que era quase sempre palhete e saboroso. Um mês e tal antes de morrer, passei pela casa de meu avô, já adoentado, já a caminhar inelutavelmente para o fim, já prestes a entregar o óbolo ao barqueiro, mas mesmo adoentado fez questão que bebesse mais uma vez do seu vinho. Foi a última vez que bebi na presença do meu avô.

     Daquele vinho, no entanto, ainda bebi durante mais alguns anos. Com muita parcimónia, religiosamente.  

PROMETEU

 

                                                                     Figger
I

 
Onde estão os meus corcéis?

Tragam-me os meus corcéis,

Que quero rápido cruzar os céus

À procura de um novo sol.

 

 II

 
Vinde cá,

Meus cavalinhos de oiro,

Vinde cá!

E levai-me a todas as galáxias,

Que quero encontrar

Uma nova luz.

 

III

 
Meus cavalinhos de oiro,

Meus fogosos corcéis!

Levai-me,

Levai-me a todos os pontos do universo,

Que quero encontrar

Uma nova fonte de fogo.

 

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 13 de agosto de 2013


TRÍPTICO PARA VAN GOGH



 
 

I

 

Subitamente,

No auge da devoção,

Recebeu do céu

Divina inspiração.

 

Desenfreado,

De paleta na mão,

Desatou a pintar

Ao ritmo do coração:

 

Sóis,

Ciprestes,

Miosótis

E girassóis.

 

II

 

Do fundo da mina

- Qual vagabundo -,

Trouxe as cores

Com que iluminou o mundo.

 

E no entanto

- Moderno Prometeu -,

O pobre Vincent

Nem uma tela vendeu.

 

III

 

E um dia,

Quando o voo rasante dos corvos

Se tornou ameaçador,

Fitou o cocuruto dos ciprestes

E entregou a alma ao Criador.

 
 

                                                              

DE CALÇAS NA MÃO

 

A lusitana mania

De esperar por quem não vem

Provoca melancolia,

Muito mal e nenhum bem.

 

Sempre de calças na mão

Ou esta à esmola estendida.

Tão estranha condição,

Tornou-se um modo de vida.

 

 

Era preciso matar

Esse rei Sebastião,

Que não pára de enganar

a nossa triste nação!

 

 

Ao mito do desejado

Dê-se um combate eficaz.

Traz este país castrado

Ou capado, tanto faz.

 

 

 

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

PARIS


Chamam-lhe a cidade luz,


Mas que luz tem a cidade?


Que fascínio seduz


Quase meia humanidade?


 


Oh, grande e bela Paris!


Oh, generosa cidade!


Não, não se engana quem diz,


Que deixas sempre saudade!


 


Um café no Luxembourg,


Descer o Saint Michel,


Os faquires no Baubourg,


Namorar na Torre Eiffel.


 


Confesso que fui feliz,


No tempo que lá vivi.


Oh, doce e gentil Paris,


Como é bom gostar de ti!


 


 


 

TI ZÉ JÚLIO
 

     Era um homem baixo e cheio, que recordo a varrer a rua à frente da sua casa, a rua de Santa Margarida, que começa junto à igreja matriz e termina no Largo do Prata. Usava uma vassoura de giestas quase da sua altura. Não era homem de tabernas. Apreciava mais sentar-se no seu poial a descansar e a ver quem passava. Era um homem bom.

     Dele se conta uma história engraçada, cuja veracidade jamais poderei apurar. E que aqui deixo em pinceladas rápidas, que rápidas quero estas minhas narrativas sobre pessoas da Mata. Esta história terá ocorrido há mais de cinquenta anos, na segunda-feira de Pascoela, que era também o dia principal da festa de S. Pedro. O padre percorria a aldeia, entrava nas casas, dava o Cristo crucificado a beijar e desejava as boas-festas aos moradores e seus paroquianos.

     Um dos organizadores deste cerimonial era o professor Falcão, que, naquele ano, decidiu com o padre, ou sozinho que é a mesma coisa, que o padre com o crucifixo só entrava nas casas dos paroquianos que tinham a côngrua paga. Quando se chegou à porta de Ti Zé Júlio, o professor Falcão sentenciou: “O Zé Júlio, não pagaste a côngrua e, por isso, o nosso senhor não entra na tua casa”.

     Ti Zé Júlio, despachado, foi buscar dinheiro e perguntou: ”Quanto é que eu devo, senhor professor?”. O professor consultou a relação e lá disse quanto era. Ti Zé Júlio pagou e quando se ia afastar, o professor disse-lhe:” Agora, o nosso Senhor já pode entrar na tua casa, Zé!”, ao que Ti Zé Júlio respondeu com prontidão: ”Não, senhor professor. O nosso Senhor não entra na minha casa, porque eu não quero. O nosso Senhor não é de vinganças”.

     E foi assim que Ti Zé Júlio, que usava o chapéu sempre inclinado para trás, deu ao professor, ao abade e restante séquito, uma grande lição. Ah, como eu gostava de ter visto a cara do professor Falcão!