Lisboa, 24 de Outubro de 1994 - Em 1986, quando Portugal aderiu à então CEE, muitos portugueses terão pensado que, finalmente, pertenciam ao clube dos ricos. Finalmente reconciliados com o velho continente e com um regime formalmente democrático, os portugueses iriam beneficiar de poderosos subsídios, para o país recuperar do atraso multissecular. Dir-se-ia, portanto, que os portugueses europeístas, verdadeiramente europeístas, pensavam bem. A CEE enviou fundos e mais fundos, milhares de milhões de contos de réis; porém, o país continua pobre e atrasado. Em boa verdade, os europeístas convictos eram poucos. E à carroça da Europa agarraram-se oportunistas de todas as cores, muitos dos defensores do “orgulhosamente sós”, para quem a Pátria e a Europa nunca foram mais do que uma teta para sugar até ao tutano; de resto, como já tinham feito seus pais e avós, relativamente ao antigo Portugal ultramarino. A dita modernização verificou-se no sector dos serviços; na construção de estradas que rasgaram o país de lés-a-lés; na qualidade de incontáveis bem de consumo vindos de fora. No entanto, a agricultura e a indústria portuguesa ficaram como estavam, agonizantes, nalguns casos, e noutros ainda pior. Os novos projectos –os grandes projectos de que o país necessita – tardam em arrancar. Os projectos agro-industriais, pretensamente modernos e adequados à realidade nacional, faliram. As indústrias que se vão aguentando, por enquanto, são as tradicionais. É doloroso ver falhar mais esta oportunidade; e, sobretudo, ver ruir o sonho dos europeístas convictos. Porque, afinal de contas, viviam dissociados do país real, isto é, de um país inculto, sempre à mercê de meia dúzia de proxenetas, sempre olhados como gente de bem e com muita astúcia. É indiscutível que Portugal vive hoje melhor do que há meia dúzia de anos. É verdade que há mais dinheiro em Portugal do que há oito anos. Mas também é verdade que nunca o dinheiro esteve tão mal distribuído e que nunca houve tantos portugueses a viver no limiar da pobreza. Falando como europeus, claro.
sábado, 28 de dezembro de 2013
DO MEU DIÁRIO
Mata, 1 de Novembro de 1994 – Gosto de vir à Mata, não para me restaurar do cansaço do dia-a-dia citadino, mas, fundamentalmente, para estar uns dias com os meus pais. Minha mãe já não tem a destreza de outros tempos. Por vezes, consigo ler-lhe nos olhos uma imensa tristeza. Vai fazendo as suas tarefas porque sim, sem alegria. Apesar das drogas, deixou-se vencer pela tristeza. Meu pai continua teimoso como sempre. Gosta do filho e dos netos, mas não é dado a grandes expansões de afecto. Teve sempre uma forma muito peculiar de gostar das pessoas e das coisas. Na Mata, já não tenho quaisquer amigos. Tenho parentes. Vendo bem, nunca tive, no adorado torrão natal, os meus melhores amigos. Conheço as pessoas com mais de trinta anos, nomeadamente os velhos, que me chamam João. Não os hostilizo, mas também não ao apaparico. Uma bacalhauzada, meia dúzia de palavras de circunstância e “c’esttout”. Visito a propriedade mais antiga da família, um naco de terra de horta, povoada, junto às lindas e aos poços, com pereiras, pessegueiros, figueiras, etc. E uma centena e tal de oliveiras. Desta tapada dizia minha mãe muito embevecida: ”dá-se tudo na nossa tapada, filho! É um a espécie de terra-santa”. E para além dos meus pais, pensando a frio, é da tapada que mais gosto. Por ali passaramos meus bisavós paternos, Francisco Lucas e Rosária Brízida, os meus avós paternos, Manuel Barata e Maria, e os meus pais. Andam por ali as minhas raízes mais profundas. Estou desconfiado que a tapada é a minha única e verdadeira Pátria.
domingo, 15 de dezembro de 2013
NO PRIMEIRO DIA EM QUE SAÍMOS SÓS
No primeiro dia em que saímos sós, Fizemos as mais sérias promessas De amor eterno. Há dias assim Nas nossas vidas. Em todas as vidas. Eu estava feliz por te ter comigo E nos teus olhos vi a felicidade. Naquela tarde foste o alvorecer; Foste o raio de sol que trouxe a luz, À noite de breu que havia em mim. Outras tardes passaram; outros dias Plácidos ou tormentosos ocorreram, Mas nunca mais houve uma tarde assim.
A PRIMEIRA VEZ QUE SAÍMOS SóS
A primeira vez que saímos sós Foi numa tarde cálida de Junho. Desse dia primeiro não esqueci o teu sorriso limpo e aquele brilho bonito dos teus grandes olhos doces. Àquele dia outros dias claros e limpos se haviam de seguir. Fugaz foi o Verão. Talvez por isso, tenha presentes tão gratas lembranças. Fugaz foi o Verão. Ai, tão fugaz! Pudesse eu repeti-lo ou reinventá-lo!
segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
DO MEU DIÁRIO
Biblioteca da Nazaré
Lisboa, 13 de Maio de 1994 - Apesar de pequenino, o nosso mundo
literário é muito mesquinho e mexeriqueiro. Outra das vítimas da nossa pequenez
mental, indiscutivelmente mais dramática do que a física, é José Carlos Ary dos
Santos. E no entanto, poucos poetas terão tido um coração tão grande. A quase
totalidade dos críticos e dos académicos ignoram-no ostensivamente; outros,
decerto os mais cínicos, acusam-no de espontaneidade excessiva e de
historicamente datado.
Daqui a quinhentos anos, se porventura
ainda existirem a pátria e a língua portuguesas, Ary dos Santos será estudado não
só como artista da palavra; mas, também, enquanto autor indispensável para a
compreensão do seu tempo histórico. Trovador de rara inspiração, com uma veia
satírica próxima de Bocage, compôs frequentemente sob a pressão do momento;
mas, sem perder o rigor formal e sem deixar de escolher a palavra mais adequada
e expressiva. Os seus detractores sabem por que o ostracizam.
Amava-o Deus mais que os homens e por
isso o chamou cedo para junto de si, como Pessoa disse de Sá-Carneiro,
repetindo o que disse um poeta clássico cujo nome não me ocorre agora.
DO MEU DIÁRIO
Lisboa, 13 de
Maio de 1994 - A ideia do suicídio acompanha-me de há vários anos a esta parte. E no entanto,a
Amo a vida na sua imensa variedade e desejo continuar a vivê-la em liberdade
(estas assonâncias!). E é na questão da liberdade que entronca a minha obsessão
pelo suicídio. Quero, com efeito, viver a vida em liberdade, porque só assim,
tal como Camus escreveu em Les Noces,
sinto orgulho na minha condição de homem.
Quero continuar a embriagar-me de sol e
de chuva e a rejubilar com a imensidão dos fenómenos da natureza, que nunca
pára de nos surpreender; quero continuar a embriagar-me com as palavras,
desvendando-lhe diariamente os seus mistérios; quero continuar a embriagar-me
com a escrita, construindo com as palavras textos belos, onde os outros possam
fruir a alegria de viver. Mas estou convencido que não resistiria a quaisquer
situações de ignomínia e de perfídia.
Com o suicídio sempre presente no meu
horizonte imediato, agarro-me ferozmente à vida, vivendo-a, cada dia
que passa, com mais intensidade. Talvez se possa chamar a esta atitude pegar a
vida pelos cornos.
DO MEU DIÁRIO
Santa
Iria de Azóia, 3 de Maio de 1994 - Torga tornou-se uma referência obrigatória
na nossa literatura contemporânea. Tem-se falado muito dele para prémio Nobel.
Se tal vier a acontecer, saudá-lo-ei neste diário.
Não
considero Torga um artista excepcional. Reconheço, contudo, que perseverou toda
uma vida na defesa dos valores da terra portuguesa. A sua poesia e a sua prosa
são feitas com palavras elementares, como elementares resultam as suas ideias.
Mas possuem aquela verosimilhança, aquela autenticidade, que nos conquistam de
imediato. Bom seria que outros criadores tivessem o dom de nos seduzir como o
autor d ‘ Os Novos Contos da Montanha.
Homem
de cerviz direita, é um daqueles portugueses que podemos indicar como exemplo
aos nossos filhos, num tempo em que por cá pululam os mais submissos
invertebrados; num tempo em que as mais impudicas canalhices caíram na
banalidade; num tempo em que a lei é o safe-se quem puder.
Torga é,
antes de mais, uma referência ética. domingo, 8 de dezembro de 2013
DESENCONTRO
Sempre desejei
Um coração
De camponesa
Para gémeo do meu.
Só assim,
Pensava eu,
Poderia sentir,
Plenamente,
O olor
E o respirar
Da terra.
Outra coisa;
Porém, ditou
O poderoso destino.
E por isso
Vivo
O desatino
Dos desencontros.
Até um dia…
Ou talvez
Para sempre!
DO MEU DIÁRIO
wikipédia
Mata,
29 de Março de 1997 - Ontem, fiz a via-sacra das livrarias de Castelo Branco, a
fim de adquirir o volume IV dos Cadernos
de Lanzarote do sublime Saramago. Escrevi sublime? Pois se escrevi, escrito
está e não retiro à palavra nenhum fonema.
Devorei páginas e mais páginas e não
lamento o tempo gasto. Confortou-me saber que o autor de Levantado do Chão, não considera que autor e narrador tenham
estatutos ontológicos diferentes. Gostei de saber que Saramago pensa, tal como
eu ou eu como ele, que os leitores procuram os autores e não essas entidades
ficcionais que é suposto contarem a história. O narrador é uma criação do
autor, que o modela a seu bel-prazer. Competente ou incompetente, omnisciente
ou o seu contrário, actante ou simples contador da história, o narrador, ainda
que não tenha uma existência real, jamais poderá ser dissociado do seu criador.
No romance, a voz do narrador é a voz do autor. Então por que carga de água se
há-de falar da ironia pessimista de Saramago? Cada vez que Saramago publica e
os seus leitores lhe caem em cima, melhor seria que pedissem contas ao
narrador.
Há
que saudar no romancista, neste em particular, o assumir de todas as
responsabilidades. Quem não quiser ser lobo, que não lhe vista a pele!
DO MEU DIÁRIO
Santa Iria de Azóia, 9 de Fevereiro de 1997 -
Margarida Vieira Mendes, académica de prestígio, foi hoje a enterrar. Ou talvez
ontem. O DN de sábado(?), muito sucinto, anunciava a morte da Professora, na
sua residência, de cancro.
Conheci
a Professora Margarida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde
ensinou, entre outras, a cadeira de Literatura Portuguesa II, incidindo o
estudo em autores como Gil Vicente (outro morto, Osório Mateus, dizia
simplesmente Vicente), Camões e António Vieira. Deste último, Margarida Vieira
Mendes era, indubitavelmente, um dos maiores especialistas.
Apesar
do seu imenso saber, Margarida não era uma boa comunicadora e repetia até à
exaustão a sua bengala “ os alunos perceberam? “. Tinha, todavia, uma qualidade única: consciente
da incientificidade das matérias que ensinava, classificava treze - catorze,
catorze - quinze, onze - doze. Não por insegurança, mas para não ser injusta.
Por esta e outras razões, guardarei para sempre uma grata recordação da
Professora Margarida.
sábado, 7 de dezembro de 2013
DO MEU DIÁRIO
Lisboa, 6 de Fevereiro de 1997 - Álvaro Cunhal, apesar
da sua provecta idade, continua a ser notícia. Ora, porque um bom realizador
pega numa novela do velho Secretário-Geral e faz um bom filme: ora, porque
resolve escrever sobre estética e o faz com desenvoltura, explicando aos
profanos as grandes obras pictóricas e arquitectónicas mundiais; ora, porque
Jorge Sampaio, naturalmente generoso, o quer agraciar com a Ordem da Liberdade.
Contudo, este português generoso, que tudo sacrificou ao combate
político-ideológico, encontra sempre pelo caminho inimigos prontos a ajustar
contas, entre os quais um tal António Barreto. Percebo a posição de Barreto,
mas não a respeito. Porque Barreto é, acima de tudo, um vingativo. Ganhador
líquido do 25 de Abril, pelos inúmeros cargos a que teve acesso e onde, bem sei,
sempre contou com a oposição do PCP, desconhece a generosidade. Porém, por
muitos defeitos que o Dr. Cunhal tenha, as suas qualidades são superiores
àqueles, facto que fará do pensador e combatente comunista uma figura maior e
incontornável do séc. XX português. E isso dói a genebristas, saltapocinhas e
afins. Ter-me-ei explicado bem?
DO MEU DIÁRIO
Santa Iria, 3 de Maio de 1994
O
Zé Ribeiro, editor, poeta e também livreiro, publicou recentemente O Rio do Esquecimento, onde a par da
linguagem escatológica, utiliza o calão mais calão da língua portuguesa, mas
onde também se podem ler sentenças como esta: «A agricultura precisa de muita
água e sapos vivos». Citei de cor.
E para
terminar, nada melhor que os sapos que uns e outros vão engolindo, neste país
tomado por «uma austera, apagada e vil tristeza». Ano da graça de l994, com
Pedro Santana Lopes titular da Secretaria de Estado da Cultura.
DO MEU DIÁRIO
Santa
Iria, 3 de Maio de 1994 - Mentiria se escrevesse, aqui e agora, que a morte não
me preocupa. Preocupa-me diariamente, e, sobretudo, porque os meus filhos
carecem de cuidados, de afecto e de pão. E aos quarenta e dois anos de idade,
não tenho pé-de-meia que lhes permita enfrentar a vida.
Não
temo a morte, porque sei da sua inevitabilidade desde pequenino. Não temo a
morte, porque não acredito num qualquer juízo final. Não temo a morte, porque
não tenho grandes coisas para fazer.
E
mesmo que tivesse, a terra não deixaria de girar à volta do sol.
*
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
quinta-feira, 5 de dezembro de 2013
DO MEU DIÁRIO
Delacroix
Portugal é
hoje um país de répteis. Não admira, assim, que a traição espreite a cada
esquina. Os portugueses sempre foram mesquinhos e interesseiros. E nada dói
tanto como a ausência de grandeza. Portugal começou a agonizar, com efeito,
ainda na primeira metade do séc. XVI. Caminha para a dissolução final,
inelutavelmente. E sobretudo, porque nunca mais soube encontrar alternativas
credíveis e atempadas.
Hoje, agarra-se e chupa a teta da mãe Europa
com quantas forças tem. O pior virá, quando a teta, sugada até ao tutano,
deixar de ser o almejado D. Sebastião.
Curiosamente, a religião nos fez grandes
e pequenos. Com o mito de cruzada dominámos metade do mundo. A Inquisição
castrou-nos para sempre.
QUADRAS DATADAS (PEDRO DE MASSAMÁ) - II
O Pedro de Massamá
Nunca
será meu amigo.
Ele é
do que pior há;
É joio
a estragar o trigo.
Eu só
falo do mandante,
Que o
homem não me interessa.
É
fracote e inconstante
E pra
destruir tem pressa.
Este
Pedro que não atina,
E nos
quer empobrecer,
Que vá
de visita à China
E fique
por lá a viver.
Pedro
Coelho está a mais,
Neste
nosso Portugal.
Saia e
leve outros pardais
Leve a
praga, leve o mal.
QUADRAS DATADAS (GASPAR)
O bom
ministro Gaspar
Sabe
contar muito bem.
Sabe
ordenados cortar
E subir
os preços também.
O
sonsinho do Gaspar
Jamais
expressa emoções.
Só fala
em cortar, cortar,
Para
dar aos galifões.
Este
Gaspar dos cifrões
Não
sabe literatura.
O outro
sabia, o Simões,
E não
era casca dura.
Gaspar
na televisão
Augura
sempre desgraça;
Com
cara de sacristão
Vai-nos
à fazenda e à massa.
Este
homem tem um fito:
Depenar
o nosso povo.
Dele
fizeram um mito,
Mas não
trouxe nada novo.
A
mezinha de Gaspar
Pra
tratar de Portugal
Só nos
trouxe mal-estar
E um
desânimo brutal.
Que o
homem vá prò Japão
Ou prà
Guiana francesa.
Em
Portugal é que não
Porque
deixa a malta tesa.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
UM RETRATO À LA MINUTA
Lisboa, 28
de Abril de 1994 - Portugal é, nos tempos que passam, um país de proxenetas.
Não admira, assim, que volte a perder a oportunidade que lhe foi oferecida com
a integração na UE. Nos nossos campos, não florescem mais oliveiras,
pessegueiros e laranjeiras do que anteriormente. Os nossos campos foram
povoados de jeeps e outras máquinas de quatro rodas, que nunca hão-de produzir
um alqueire de trigo, cevada ou aveia. Onde outrora ondulavam searas
verdejantes, há agora coutadas quase desertas, para os tecnocratas se
libertarem, ao fim-de-semana, do «stress» dos seus quotidianos
indiscutivelmente movimentados, mas quantas vezes inúteis.
A
indústria definha, apesar dos muitos milhões de contos que lhe têm sido
insuflados para se modernizar. Acontece, todavia, que a desejada modernização
passou simplesmente pela aquisição de equipamento informático e não pelo
equipamento indispensável ao sector produtivo. Por conseguinte, aumentou o
desemprego e diminuiu a produção e a competitividade. Neste sector, se não
estou em erro, as grandes maquias foram gastas na aquisição de BMW e na
construção de palacetes.
É
este o retrato do meu país. Indiscutivelmente um retrato pessimista, mas
verdadeiro. Porque Portugal é um país de bácoros, que sugam vorazmente a teta
da UE.
ESTE ORÇAMENTO CANINO
Este
orçamento canino,
Que
destrói este país,
É
obra de gente com tino,
Que
sabe o que faz e diz.
Como
é dura a nossa vida
-
Isto assim nem é viver!-
Esta
gentinha atrevida
Só
nos quer empobrecer.
terça-feira, 3 de dezembro de 2013
VAMOS SER REFUNDADOS
Vamos
ser bem refundados
-
Que a obra vai ser perfeita! –
Portugal
requer cuidados
E
refundar é a receita.
Correr
com esta gentinha,
Que
desgoverna o país,
É
tarefa vossa e minha
E
sou eu quem vo-lo diz.
Ou
se trava esta loucura
Ou
vai tudo prò maneta.
Esta
gente é muito dura
E
quer-nos ver na valeta.
JOÃO
BARRIGANA
Homem de excessos, acertou cedo as contas
com o Criador; como, de resto, já tinha acontecido com os irmãos. Terá chegado
aos setenta, pouca idade para os tempos que vão correndo.
Apesar da diferença de idades,
tutuávamo-nos e conversámos muito. Cada qual com a sua pedra no bolso e vá lá
saber-se porquê. Talvez a política, mas o que é um facto é que nunca discuti
política com o João Faustino, apesar de ter sido durante vários anos presidente
da junta de freguesia da Mata, que agora é dos Escalos de Baixo e Mata, devido
à engenharia relvas.
Gaguejava muito, mas ninguém ficava sem
resposta. Dizia-se que ficou gago devido a um coiçe de burro, quando ainda era
criança. Aprendeu uma profissão, emigrou, construiu um edifício polivalente,
que servia de café, salão de jogos, salão para eventos e casa de habitação. O
café do “Barrigana”, a dois passos do Largo do Rossio, onde outrora se esperava
pacientemente um cântaro de água, nos dias longos do verão, dava à Mata uma
nova centralidade.
Nunca cheguei a saber se foi eleito como
independente ou numa lista do PSD ou do PS. O que posso dizer é que a junta de
freguesia era o João Barrigana, ou João Faustino, que para o caso pouco
interessa, que tinha coadjuvantes mas que a personalidade do presidente
eclipsava. O que nem era mau nem bom, porque o importante era fazer obras e creio
que o João Barrigana mandou fazer algumas e parece que chateava nas reuniões da
assembleia municipal.
Uma vez perguntei a meu pai: “em quem é
que vai votar, pai?”, que me respondeu muito prontamente: “vou votar no João
Barrigana, que quando fui operado fez o favor de me ir dar sangue”. E contra
factos não há argumentos. A resposta de meu pai desarmou-me e qualquer
discussão não faria mais sentido. E creio que terá votado sempre no João,
parente afastado por afinidade, que lhe dera sangue, numa das curvas apertadas
da vida.
Comigo a coisa piava mais fino. Quando o
encontrava sentado ao balcão do café, agarrado à sua bejeca, tartamudeava
sempre algumas palavras, quase sempre imperceptíveis, mas que eram invariavelmente
uma pequena mas inofensiva provocação. Estava-lhe na massa do sangue; porem, nunca
lhe quis mal por isso. Que a terra lhe seja leve!
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