sábado, 28 de dezembro de 2013

DO MEU DIÁRIO

Lisboa, 24 de Outubro de 1994 - Em 1986, quando Portugal aderiu à então CEE, muitos portugueses terão pensado que, finalmente, pertenciam ao clube dos ricos. Finalmente reconciliados com o velho continente e com um regime formalmente democrático, os portugueses iriam beneficiar de poderosos subsídios, para o país recuperar do atraso multissecular. Dir-se-ia, portanto, que os portugueses europeístas, verdadeiramente europeístas, pensavam bem. A CEE enviou fundos e mais fundos, milhares de milhões de contos de réis; porém, o país continua pobre e atrasado. Em boa verdade, os europeístas convictos eram poucos. E à carroça da Europa agarraram-se oportunistas de todas as cores, muitos dos defensores do “orgulhosamente sós”, para quem a Pátria e a Europa nunca foram mais do que uma teta para sugar até ao tutano; de resto, como já tinham feito seus pais e avós, relativamente ao antigo Portugal ultramarino. A dita modernização verificou-se no sector dos serviços; na construção de estradas que rasgaram o país de lés-a-lés; na qualidade de incontáveis bem de consumo vindos de fora. No entanto, a agricultura e a indústria portuguesa ficaram como estavam, agonizantes, nalguns casos, e noutros ainda pior. Os novos projectos –os grandes projectos de que o país necessita – tardam em arrancar. Os projectos agro-industriais, pretensamente modernos e adequados à realidade nacional, faliram. As indústrias que se vão aguentando, por enquanto, são as tradicionais. É doloroso ver falhar mais esta oportunidade; e, sobretudo, ver ruir o sonho dos europeístas convictos. Porque, afinal de contas, viviam dissociados do país real, isto é, de um país inculto, sempre à mercê de meia dúzia de proxenetas, sempre olhados como gente de bem e com muita astúcia. É indiscutível que Portugal vive hoje melhor do que há meia dúzia de anos. É verdade que há mais dinheiro em Portugal do que há oito anos. Mas também é verdade que nunca o dinheiro esteve tão mal distribuído e que nunca houve tantos portugueses a viver no limiar da pobreza. Falando como europeus, claro.

DO MEU DIÁRIO

Mata, 1 de Novembro de 1994 – Gosto de vir à Mata, não para me restaurar do cansaço do dia-a-dia citadino, mas, fundamentalmente, para estar uns dias com os meus pais. Minha mãe já não tem a destreza de outros tempos. Por vezes, consigo ler-lhe nos olhos uma imensa tristeza. Vai fazendo as suas tarefas porque sim, sem alegria. Apesar das drogas, deixou-se vencer pela tristeza. Meu pai continua teimoso como sempre. Gosta do filho e dos netos, mas não é dado a grandes expansões de afecto. Teve sempre uma forma muito peculiar de gostar das pessoas e das coisas. Na Mata, já não tenho quaisquer amigos. Tenho parentes. Vendo bem, nunca tive, no adorado torrão natal, os meus melhores amigos. Conheço as pessoas com mais de trinta anos, nomeadamente os velhos, que me chamam João. Não os hostilizo, mas também não ao apaparico. Uma bacalhauzada, meia dúzia de palavras de circunstância e “c’esttout”. Visito a propriedade mais antiga da família, um naco de terra de horta, povoada, junto às lindas e aos poços, com pereiras, pessegueiros, figueiras, etc. E uma centena e tal de oliveiras. Desta tapada dizia minha mãe muito embevecida: ”dá-se tudo na nossa tapada, filho! É um a espécie de terra-santa”. E para além dos meus pais, pensando a frio, é da tapada que mais gosto. Por ali passaramos meus bisavós paternos, Francisco Lucas e Rosária Brízida, os meus avós paternos, Manuel Barata e Maria, e os meus pais. Andam por ali as minhas raízes mais profundas. Estou desconfiado que a tapada é a minha única e verdadeira Pátria.

domingo, 15 de dezembro de 2013

NO PRIMEIRO DIA EM QUE SAÍMOS SÓS

No primeiro dia em que saímos sós, Fizemos as mais sérias promessas De amor eterno. Há dias assim Nas nossas vidas. Em todas as vidas. Eu estava feliz por te ter comigo E nos teus olhos vi a felicidade. Naquela tarde foste o alvorecer; Foste o raio de sol que trouxe a luz, À noite de breu que havia em mim. Outras tardes passaram; outros dias Plácidos ou tormentosos ocorreram, Mas nunca mais houve uma tarde assim.

A PRIMEIRA VEZ QUE SAÍMOS SóS

A primeira vez que saímos sós Foi numa tarde cálida de Junho. Desse dia primeiro não esqueci o teu sorriso limpo e aquele brilho bonito dos teus grandes olhos doces. Àquele dia outros dias claros e limpos se haviam de seguir. Fugaz foi o Verão. Talvez por isso, tenha presentes tão gratas lembranças. Fugaz foi o Verão. Ai, tão fugaz! Pudesse eu repeti-lo ou reinventá-lo!



segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

DO MEU DIÁRIO


Biblioteca da Nazaré
       
 
 Lisboa, 13 de Maio de 1994 - Apesar de pequenino, o nosso mundo literário é muito mesquinho e mexeriqueiro. Outra das vítimas da nossa pequenez mental, indiscutivelmente mais dramática do que a física, é José Carlos Ary dos Santos. E no entanto, poucos poetas terão tido um coração tão grande. A quase totalidade dos críticos e dos académicos ignoram-no ostensivamente; outros, decerto os mais cínicos, acusam-no de espontaneidade excessiva e de historicamente datado.

        Daqui a quinhentos anos, se porventura ainda existirem a pátria e a língua portuguesas, Ary dos Santos será estudado não só como artista da palavra; mas, também, enquanto autor indispensável para a compreensão do seu tempo histórico. Trovador de rara inspiração, com uma veia satírica próxima de Bocage, compôs frequentemente sob a pressão do momento; mas, sem perder o rigor formal e sem deixar de escolher a palavra mais adequada e expressiva. Os seus detractores sabem por que o ostracizam.

        Amava-o Deus mais que os homens e por isso o chamou cedo para junto de si, como Pessoa disse de Sá-Carneiro, repetindo o que disse um poeta clássico cujo nome não me ocorre agora.

 



DO MEU DIÁRIO



Lisboa, 13 de Maio de 1994 - A ideia do suicídio acompanha-me de há vários anos a esta parte. E no entanto,a Amo a vida na sua imensa variedade e desejo continuar a vivê-la em liberdade (estas assonâncias!). E é na questão da liberdade que entronca a minha obsessão pelo suicídio. Quero, com efeito, viver a vida em liberdade, porque só assim, tal como Camus escreveu em Les Noces, sinto orgulho na minha condição de homem.

        Quero continuar a embriagar-me de sol e de chuva e a rejubilar com a imensidão dos fenómenos da natureza, que nunca pára de nos surpreender; quero continuar a embriagar-me com as palavras, desvendando-lhe diariamente os seus mistérios; quero continuar a embriagar-me com a escrita, construindo com as palavras textos belos, onde os outros possam fruir a alegria de viver. Mas estou convencido que não resistiria a quaisquer situações de ignomínia e de perfídia.

        Com o suicídio sempre presente no meu horizonte imediato, agarro-me ferozmente à vida, vivendo-a, cada dia que passa, com mais intensidade. Talvez se possa chamar a esta atitude pegar a vida pelos cornos.

 

 

DO MEU DIÁRIO


 Santa Iria de Azóia, 3 de Maio de 1994 - Torga tornou-se uma referência obrigatória na nossa literatura contemporânea. Tem-se falado muito dele para prémio Nobel. Se tal vier a acontecer, saudá-lo-ei neste diário.

        Não considero Torga um artista excepcional. Reconheço, contudo, que perseverou toda uma vida na defesa dos valores da terra portuguesa. A sua poesia e a sua prosa são feitas com palavras elementares, como elementares resultam as suas ideias. Mas possuem aquela verosimilhança, aquela autenticidade, que nos conquistam de imediato. Bom seria que outros criadores tivessem o dom de nos seduzir como o autor d ‘ Os Novos Contos da Montanha.

        Homem de cerviz direita, é um daqueles portugueses que podemos indicar como exemplo aos nossos filhos, num tempo em que por cá pululam os mais submissos invertebrados; num tempo em que as mais impudicas canalhices caíram na banalidade; num tempo em que a lei é o safe-se quem puder.
     Torga é, antes de mais, uma referência ética. 


domingo, 8 de dezembro de 2013

DESENCONTRO


 

Sempre desejei

Um coração

De camponesa

Para gémeo do meu.

 

Só assim,

Pensava eu,

Poderia sentir,

Plenamente,

O olor

E o respirar

Da terra.

 

Outra coisa;

Porém, ditou

O poderoso destino.

E por isso

Vivo

O desatino

Dos desencontros.

 

Até um dia…

Ou talvez

Para sempre!

 

DO MEU DIÁRIO


 
wikipédia

Mata, 29 de Março de 1997 - Ontem, fiz a via-sacra das livrarias de Castelo Branco, a fim de adquirir o volume IV dos Cadernos de Lanzarote do sublime Saramago. Escrevi sublime? Pois se escrevi, escrito está e não retiro à palavra nenhum fonema.

     Devorei páginas e mais páginas e não lamento o tempo gasto. Confortou-me saber que o autor de Levantado do Chão, não considera que autor e narrador tenham estatutos ontológicos diferentes. Gostei de saber que Saramago pensa, tal como eu ou eu como ele, que os leitores procuram os autores e não essas entidades ficcionais que é suposto contarem a história. O narrador é uma criação do autor, que o modela a seu bel-prazer. Competente ou incompetente, omnisciente ou o seu contrário, actante ou simples contador da história, o narrador, ainda que não tenha uma existência real, jamais poderá ser dissociado do seu criador. No romance, a voz do narrador é a voz do autor. Então por que carga de água se há-de falar da ironia pessimista de Saramago? Cada vez que Saramago publica e os seus leitores lhe caem em cima, melhor seria que pedissem contas ao narrador.

     Há que saudar no romancista, neste em particular, o assumir de todas as responsabilidades. Quem não quiser ser lobo, que não lhe vista a pele!

DO MEU DIÁRIO


Santa Iria de Azóia, 9 de Fevereiro de 1997 - Margarida Vieira Mendes, académica de prestígio, foi hoje a enterrar. Ou talvez ontem. O DN de sábado(?), muito sucinto, anunciava a morte da Professora, na sua residência, de cancro.

     Conheci a Professora Margarida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde ensinou, entre outras, a cadeira de Literatura Portuguesa II, incidindo o estudo em autores como Gil Vicente (outro morto, Osório Mateus, dizia simplesmente Vicente), Camões e António Vieira. Deste último, Margarida Vieira Mendes era, indubitavelmente, um dos maiores especialistas.

     Apesar do seu imenso saber, Margarida não era uma boa comunicadora e repetia até à exaustão a sua bengala “ os alunos perceberam? “.  Tinha, todavia, uma qualidade única: consciente da incientificidade das matérias que ensinava, classificava treze - catorze, catorze - quinze, onze - doze. Não por insegurança, mas para não ser injusta. Por esta e outras razões, guardarei para sempre uma grata recordação da Professora Margarida.

sábado, 7 de dezembro de 2013

DO MEU DIÁRIO


Lisboa, 6 de Fevereiro de 1997 - Álvaro Cunhal, apesar da sua provecta idade, continua a ser notícia. Ora, porque um bom realizador pega numa novela do velho Secretário-Geral e faz um bom filme: ora, porque resolve escrever sobre estética e o faz com desenvoltura, explicando aos profanos as grandes obras pictóricas e arquitectónicas mundiais; ora, porque Jorge Sampaio, naturalmente generoso, o quer agraciar com a Ordem da Liberdade.

     Contudo, este português generoso, que tudo sacrificou ao combate político-ideológico, encontra sempre pelo caminho inimigos prontos a ajustar contas, entre os quais um tal António Barreto. Percebo a posição de Barreto, mas não a respeito. Porque Barreto é, acima de tudo, um vingativo. Ganhador líquido do 25 de Abril, pelos inúmeros cargos a que teve acesso e onde, bem sei, sempre contou com a oposição do PCP, desconhece a generosidade. Porém, por muitos defeitos que o Dr. Cunhal tenha, as suas qualidades são superiores àqueles, facto que fará do pensador e combatente comunista uma figura maior e incontornável do séc. XX português. E isso dói a genebristas, saltapocinhas e afins. Ter-me-ei explicado bem?

 

DO MEU DIÁRIO

Santa Iria, 3 de Maio de 1994


        O Zé Ribeiro, editor, poeta e também livreiro, publicou recentemente O Rio do Esquecimento, onde a par da linguagem escatológica, utiliza o calão mais calão da língua portuguesa, mas onde também se podem ler sentenças como esta: «A agricultura precisa de muita água e sapos vivos». Citei de cor.

   E para terminar, nada melhor que os sapos que uns e outros vão engolindo, neste país tomado por «uma austera, apagada e vil tristeza». Ano da graça de l994, com Pedro Santana Lopes titular da Secretaria de Estado da Cultura.

DO MEU DIÁRIO


        Santa Iria, 3 de Maio de 1994 - Mentiria se escrevesse, aqui e agora, que a morte não me preocupa. Preocupa-me diariamente, e, sobretudo, porque os meus filhos carecem de cuidados, de afecto e de pão. E aos quarenta e dois anos de idade, não tenho pé-de-meia que lhes permita enfrentar a vida.

        Não temo a morte, porque sei da sua inevitabilidade desde pequenino. Não temo a morte, porque não acredito num qualquer juízo final. Não temo a morte, porque não tenho grandes coisas para fazer.

        E mesmo que tivesse, a terra não deixaria de girar à volta do sol.     

                                                                          

*

 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

QUADRAS DATADAS (ASSUNÇÃO CRISTAS)


 


Pede aos santos Assunção

A chuvinha que não vem.

É castigo sem perdão

Que o povo paga também.

 

Chova lá o que chover,

- Ai, é tão grande a desgraça! -

O meu povo vai sofrer

Que esta seca só já passa,

 

Se a pandilha for embora

Para longe do país.

Há-de ir. Vai chegar a hora

Deste povo ser feliz.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

DO MEU DIÁRIO



 


Delacroix

 
Portugal é hoje um país de répteis. Não admira, assim, que a traição espreite a cada esquina. Os portugueses sempre foram mesquinhos e interesseiros. E nada dói tanto como a ausência de grandeza. Portugal começou a agonizar, com efeito, ainda na primeira metade do séc. XVI. Caminha para a dissolução final, inelutavelmente. E sobretudo, porque nunca mais soube encontrar alternativas credíveis e atempadas.

     Hoje, agarra-se e chupa a teta da mãe Europa com quantas forças tem. O pior virá, quando a teta, sugada até ao tutano, deixar de ser o almejado D. Sebastião.

        Curiosamente, a religião nos fez grandes e pequenos. Com o mito de cruzada dominámos metade do mundo. A Inquisição castrou-nos para sempre.

 


QUADRAS DATADAS (PEDRO DE MASSAMÁ) - II




 
O Pedro de Massamá

Nunca será meu amigo.

Ele é do que pior há;

É joio a estragar o trigo.

 

Eu só falo do mandante,

Que o homem não me interessa.

É fracote e inconstante

E pra destruir tem pressa.

 
Este Pedro que não atina,

E nos quer empobrecer,

Que vá de visita à China

E fique por lá a viver.

 

Pedro Coelho está a mais,

Neste nosso Portugal.

Saia e leve outros pardais

Leve a praga, leve o mal.

 

QUADRAS DATADAS (GASPAR)


 


O bom ministro Gaspar

Sabe contar muito bem.

Sabe ordenados cortar

E subir os preços também.

 

O sonsinho do Gaspar

Jamais expressa emoções.

Só fala em cortar, cortar,

Para dar aos galifões.

 

Este Gaspar dos cifrões

Não sabe literatura.

O outro sabia, o Simões,

E não era casca dura.

 

Gaspar na televisão

Augura sempre desgraça;

Com cara de sacristão

Vai-nos à fazenda e à massa.

 

Este homem tem um fito:

Depenar o nosso povo.

Dele fizeram um mito,

Mas não trouxe nada novo.

 

A mezinha de Gaspar

Pra tratar de Portugal

Só nos trouxe mal-estar

E um desânimo brutal.

 

Que o homem vá prò Japão

Ou prà Guiana francesa.

Em Portugal é que não

Porque deixa a malta tesa.

 

 
 

 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

UM RETRATO À LA MINUTA


 Lisboa, 28 de Abril de 1994 - Portugal é, nos tempos que passam, um país de proxenetas. Não admira, assim, que volte a perder a oportunidade que lhe foi oferecida com a integração na UE. Nos nossos campos, não florescem mais oliveiras, pessegueiros e laranjeiras do que anteriormente. Os nossos campos foram povoados de jeeps e outras máquinas de quatro rodas, que nunca hão-de produzir um alqueire de trigo, cevada ou aveia. Onde outrora ondulavam searas verdejantes, há agora coutadas quase desertas, para os tecnocratas se libertarem, ao fim-de-semana, do «stress» dos seus quotidianos indiscutivelmente movimentados, mas quantas vezes inúteis.

        A indústria definha, apesar dos muitos milhões de contos que lhe têm sido insuflados para se modernizar. Acontece, todavia, que a desejada modernização passou simplesmente pela aquisição de equipamento informático e não pelo equipamento indispensável ao sector produtivo. Por conseguinte, aumentou o desemprego e diminuiu a produção e a competitividade. Neste sector, se não estou em erro, as grandes maquias foram gastas na aquisição de BMW e na construção de palacetes.

        É este o retrato do meu país. Indiscutivelmente um retrato pessimista, mas verdadeiro. Porque Portugal é um país de bácoros, que sugam vorazmente a teta da UE.

ESTE ORÇAMENTO CANINO


Este orçamento canino,

Que destrói este país,

É obra de gente com tino,

Que sabe o que faz e diz.

 

Como é dura a nossa vida

- Isto assim nem é viver!-

Esta gentinha atrevida

Só nos quer empobrecer.

 


Estou farto desta tralha

Que depaupera o país.

Era tão bom que a maralha

Lhes apertasse o nariz.

 

A coisa vai dar prò torto,

Que certo não pode dar.

O povo parece morto,

Mas há-de ressuscitar.

 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

VAMOS SER REFUNDADOS


 
 
Vamos ser bem refundados

- Que a obra vai ser perfeita! –

Portugal requer cuidados

E refundar é a receita.

 

Correr com esta gentinha,

Que desgoverna o país,

É tarefa vossa e minha

E sou eu quem vo-lo diz.

 

Ou se trava esta loucura

Ou vai tudo prò maneta.

Esta gente é muito dura

E quer-nos ver na valeta.

JOÃO BARRIGANA

 


     Homem de excessos, acertou cedo as contas com o Criador; como, de resto, já tinha acontecido com os irmãos. Terá chegado aos setenta, pouca idade para os tempos que vão correndo.

     Apesar da diferença de idades, tutuávamo-nos e conversámos muito. Cada qual com a sua pedra no bolso e vá lá saber-se porquê. Talvez a política, mas o que é um facto é que nunca discuti política com o João Faustino, apesar de ter sido durante vários anos presidente da junta de freguesia da Mata, que agora é dos Escalos de Baixo e Mata, devido à engenharia relvas.

     Gaguejava muito, mas ninguém ficava sem resposta. Dizia-se que ficou gago devido a um coiçe de burro, quando ainda era criança. Aprendeu uma profissão, emigrou, construiu um edifício polivalente, que servia de café, salão de jogos, salão para eventos e casa de habitação. O café do “Barrigana”, a dois passos do Largo do Rossio, onde outrora se esperava pacientemente um cântaro de água, nos dias longos do verão, dava à Mata uma nova centralidade.

     Nunca cheguei a saber se foi eleito como independente ou numa lista do PSD ou do PS. O que posso dizer é que a junta de freguesia era o João Barrigana, ou João Faustino, que para o caso pouco interessa, que tinha coadjuvantes mas que a personalidade do presidente eclipsava. O que nem era mau nem bom, porque o importante era fazer obras e creio que o João Barrigana mandou fazer algumas e parece que chateava nas reuniões da assembleia municipal.

     Uma vez perguntei a meu pai: “em quem é que vai votar, pai?”, que me respondeu muito prontamente: “vou votar no João Barrigana, que quando fui operado fez o favor de me ir dar sangue”. E contra factos não há argumentos. A resposta de meu pai desarmou-me e qualquer discussão não faria mais sentido. E creio que terá votado sempre no João, parente afastado por afinidade, que lhe dera sangue, numa das curvas apertadas da vida.

     Comigo a coisa piava mais fino. Quando o encontrava sentado ao balcão do café, agarrado à sua bejeca, tartamudeava sempre algumas palavras, quase sempre imperceptíveis, mas que eram invariavelmente uma pequena mas inofensiva provocação. Estava-lhe na massa do sangue; porem, nunca lhe quis mal por isso. Que a terra lhe seja leve!