segunda-feira, 2 de setembro de 2013


TI CHICO MELGO

 


      Morava ao cimo da minha rua e foi sempre um vizinho exemplar. Tinha uma forma muito própria de pisar o chão, o que me faz pensar que teria dado um excelente bailarino. Sempre muito magro, quando sóbrio e com o fato domingueiro vestido, era um homem elegante.

     Durante a semana trabalhava e não exagerava no álcool. Saudava as pessoas com sobriedade e com um sorriso amigo. Recordo-me bem do sorriso fino e maroto de Ti Fcisco Melgo - sim, Fcisco, porque na Mata sempre houve a tendência para suprimir fonemas às palavras ou para certas corruptelas -, ao cruzar-se comigo ou com as demais pessoas.

     Este homem trabalhador e pacífico, quando ingeria álcool em excesso, sofria uma transfiguração radical: energia desmesurada, correrias, vernáculo do mais puro e duro. Nas tardes de domingo ou quando regressava de Castelo Branco, quando à cidade tinha que se deslocar, já bem bebido, tinha o seu quê de mefistofélico. A malta nova, que lhe conhecia a natureza do vinho e da aguardente, provocava-o com um som idêntico ao emitido pelos bodes. Ti Fcisco Melgo corria de um lado para o outro, dizendo todo o tipo de impropérios, que, sei bem. O leitor não terá dificuldades em adivinhar.

     Quando regressava embriagado de Castelo Branco, ria-se, gesticulava, corria atrás da pequenada; as mulheres, todas muito pundonorosas, fechavam-se em casa, mas ficavam de ouvido bem atento aos desmandos verbais de Francisco dos Santos, que era este o nome e o apelido de registo e baptismo.

     Numa noite de Inverno, perante a chuva de impropérios, o cabo da GNR, Marcos Sobreiro de seu nome, quis levá-lo para o posto da dita GNR para lhe dar amoníaco a cheirar, porque o amoníaco faz espirrar e acelera o efeito do álcool. Ti Fcisco Melgo, com uma graça quase infantil, responde ao cabo, com o seu sorriso escarninho: “Leve-me às costas, senhor cabo, que é o mesmo que dizer, leve-me às cavalitas. É óbvio que ninguém resistiu a uma boa risota.

     Morreu um pouco como viveu. Numa noite de Inverno, com muita aguardente no corpo. Ficou na rua e o frio não lhe perdoou. Mas perdoo-lhe eu, caro leitor, que este homem, que tocava harmónio, acabou por dispor bem muitas gerações de gente da Mata. Se fosse possível, gostava de lhe enviar um sorriso, para lhe agradecer a alegria que tantas vezes a todos proporcionava.

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