quarta-feira, 14 de agosto de 2013


TI ZÉ MEXE

      Tinha a necessidade e o vício do trabalho. Por isso mesmo, acertou em cheio, quem lhe colou a alcunha “Mexe”. Ti Zé Mexe era o pai de minha mãe, sabia ler e escrever, mas nunca passou de trabalhador do campo, lagareiro e mestre de lagar de azeite. Um trabalhador letrado que ceifou muito, trigo e outros cereais, que malhou muito, milho e feijão, que podou muitas árvores e limpou muitas oliveiras.

     Tive sempre uma afeição especial por este homem, a quem pedia a bênção a instâncias de minha mãe, mas que tudo retribuía com austera generosidade. “Anda cá”, dizia ele aos domingos, quando me via. Eu aproximava-me e dizia: ”Guarde-o Deus, avô” ou “gaurdesdeus”, que era assim que se dizia na Mata. Meu avô tirava uns tostões do seu porta-moedas de orelhas, comprado na feira dos Santos, em Alcains, e dizia: “Toma, é para amendoins” e sorria e retomava o seu lugar no grupo de amigos.

     Nunca foi protagonista de uma proeza para a posteridade. Trabalhou, trabalhou, trabalhou, teve dois casamentos, quatro filhas e a meia dúzia de netos, ou seja, nada que possa fazer sair um homem da turba. Mas era respeitado pelas suas qualidades de trabalho e honradez. A semana tinha seis dias e meio de trabalho e meio dia de descanso, ainda assim, o tempo suficiente para uma passagem pelas tabernas da Mata, que, na minha meninice, eram muitas, e para uns copos bem bebidos, que às vezes deixavam marca na alvura da camisa dominical.

     Quando entrava na sua casa e ainda mal tinha respondido à pergunta “Quem lá vem?”, já o meu avô dizia à minha avó, que não era a minha avó de sangue, mas que sempre me tratou como neto e eu como avó: ”Ó Maria, dá uma fatia de pão aos cachopos”. Os cachopos eram os seus dois netos varões, ou seja, este vosso amigo e o Zé Capinha, que é mais conhecido por Zé Maceiras. É certo que nunca passámos fome, sempre houve pão e conduto nas nossas casas, mas aceitávamos o pão com queijo ou com chouriço, que era uma forma outra de mostrarmos o nosso afecto ao nosso avô.

     Produzia algum vinho, sem quaisquer tratamentos, que era quase sempre palhete e saboroso. Um mês e tal antes de morrer, passei pela casa de meu avô, já adoentado, já a caminhar inelutavelmente para o fim, já prestes a entregar o óbolo ao barqueiro, mas mesmo adoentado fez questão que bebesse mais uma vez do seu vinho. Foi a última vez que bebi na presença do meu avô.

     Daquele vinho, no entanto, ainda bebi durante mais alguns anos. Com muita parcimónia, religiosamente.  

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