segunda-feira, 5 de agosto de 2013


TI JOÃO BALHAU (ASADINHO)



     Terá sido este homem bom, com algum jeito para contar histórias, que me fez as primeiras botas. Recordo-me daquele corredor onde trabalhava, dias inteiros, sentado numa cadeira de palha, baixa, e do calçado para consertar arrumado do lado esquerdo do dito corredor e também à sua mão esquerda. Era o seu posto de trabalho da primavera ao outono, porque quando estava mais frio ou chovia, trabalhava no forro da sua casa. Sim, uma espécie de sótão, onde a braseira aconchegava os pés.

     Era vizinho de meu avô Manuel Barata, Ti Careca por alcunha, e também por este facto, passei por ali muitas horas da minha infância, ouvindo as histórias, mais ou menos apimentadas, da aldeia. Contava que meu avô, muito dado a crendices, fora consultar uma soldadora que havia em Castelo Branco e que esta lhe prometera a cura da perna coxa, que coxa havia de ficar até ao fim dos seus dias. Porém, movido pela fé e pela vontade da cura, meu avô terá dito ao mestre sapateiro: “Ó João, é desta que vou ficar curado e vou fazer sozinho a festa do Mártir S. Sebastião!”. E o bom do meu avô, crente até à raiz dos cabelos, dava passos como se nunca tivesse coxeado. Sol de pouca dura. Meu avô continuou a coxear e ao Mártir outros fizeram a festa.

     “Faça-lhe umas botas bonitas, mas com borracha, que sempre duram mais”, disse a minha mãe. “Põe aqui o pé”, dizia o mestre sapateiro, que, com um lápis, fazia a planta do meu pé numa folha de papel pardo. “Mas faça-lhas folgadinhas, que o rapaz está a crescer”, insistia minha mãe. “Está descansada, que vai ter botas por muito tempo”, asseverava Ti João Balhau. E as botas foram feitas e duraram muito tempo, porque quando o pé deixou de caber, cortou-se a biqueira à bota e os dedos podiam crescer à vontade.

     Estava ali a poucos metros da taberna do Prata, que depois havia de ser café e com vários proprietários ao longo dos anos, onde o nosso homem, roliço, cabelos ondulados e com a sua marreca profissional, se deslocava célere, a fim de matar a sede. Por vezes, nem tirava o avental que tão precioso era no exercício da profissão. E depressa regressava para retomar a obra, que os clientes eram muitos e não havia mãos a medir.

    

 

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