domingo, 28 de janeiro de 2018

                                                                                                        Filipa Barata


(Faculdade de Letras de Lisboa)



Teoria da Heteronímia ou “O Jogo dos Nomes”?

Teoria da Heteronímia, de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, recentemente editada pela Assírio & Alvim, é uma súmula da heteronímia pessoana e dos olhares que, ao longo do tempo, se têm debruçado sobre ela. O livro que apresentamos constitui-se, sob vários aspetos, como um fundamental conjunto de textos escritos por Fernando Pessoa e seus heterónimos, onde a questão da heteronímia – que, porventura, constitui o polo mais atraente da obra de Fernando Pessoa - se encontra em destaque.
Um dos primeiros aspectos a ter conta é que uma obra vasta e heterogénea como a de Pessoa que, desde o seu aparecimento e até à morte do seu autor, não cessou de ter admiradores e leitores, há muito que justificava uma compilação de textos, onde a questão da heteronímia viesse a ocupar um lugar central. E isto porque, parece não restarem dúvidas de que a construção heteronímica tem sido não apenas um dos principais motivos de interesse em relação à obra de Pessoa e, consequentemente, aquilo que o torna mais conhecido, mas também aquilo que encontramos na base de todo um trabalho crítico que se ergueu não só em torno da obra, mas também do autor dela.
Sem querermos atalhar caminho, no que concerne à matéria deste livro – e não deixando, mais uma vez, de reiterar a sua necessidade no panorama dos estudos pessoanos, mas também para os leitores de Pessoa, em geral – gostaríamos de referir, desde já, que uma das coisas que parecem ficar claras, a partir da sua leitura, e no que à heteronímia respeita, é o facto de ser Fernando Pessoa o primeiro autor a colocar em questão justamente a autoria da escrita. O que subjaz à criação dos heterónimos é uma questão que se pode formular de maneira aparentemente simples: quem é o autor dos textos escritos sob o nome de Fernando Pessoa? Sabendo de antemão que Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são heterónimos será que devemos tratá-los autonomamente em relação ao ortónimo? E o ortónimo será o “poeta verdadeiro”? Como se pode actualmente entender o que é um heterónimo sem passar pelas teorizações mais antigas que, na sua grande maioria, tentam explicações de tipo psicologista e que tão afastadas parecem, hoje, da compreensão sobre a literatura e o texto literário?
Para estas e outras questões vamos encontrar resposta em Teoria da Heteronímia, desde logo, pela compreensão de que “(…) todos os géneros literários implicam a constituição ficcional de um autor. “ (p.23). E, mais ainda, no caso de Pessoa, em que a dissolução da personalidade, defendida pelo próprio, faz com que o nome do autor (Fernando Pessoa) se torne também ele uma ficção.
Mas detenhamo-nos, para já, sobre o longo prefácio que acompanha Teoria da Heteronímia, onde é feito um périplo pelos terrenos da crítica pessoana mais convencional, e cujas interpretações se colocam, muitas vezes, na esteira da explicação dada por Pessoa, na carta a Adolfo Casais Monteiro (13-1-1935), defendendo a despersonalização como um processo capaz de explicar a reunião de vozes de outros no interior do Poeta. Entre os que partilham esta posição encontram-se nomes como os de José Gil ou Eduardo Lourenço, o primeiro através do conceito do “espaço interior” (p.13) e, o segundo, tentando esclarecer o sentido dessa despersonalização através da criação de “personalizações” (p.14).
Contudo, há outras posições que, procurando pôr um pouco de lado a explicação de Pessoa, entendem a questão da heteronímia à luz de um culto das personae, algo comum na poesia moderna, e que acaba por conhecer posteriores desenvolvimentos com as poéticas da Vanguarda. Neste sentido, e segundo os autores de Teoria da Heteronímia, as leituras que têm por base esta perspectiva tendem a desviar-se mais de uma heteronímia vista como “um jogo de subjectividades” (p.13), encarando-a antes como parte de um processo artístico próprio dessas poéticas.
Mas, a revisitação crítica prossegue e, desta vez, para citar Óscar Lopes que aponta, no caso de Pessoa, para existência de uma personalidade genial, através da qual se manifestam naturalmente outras vozes.
Depois cita-se ainda Jacinto do Prado Coelho, que, como notam os autores, afasta-se das críticas mais convencionais – pese inclusivamente o facto de se tratar de um dos estudiosos mais antigos de Pessoa e dos que mais terá contribuído para a divulgação da sua obra – sublinhando a dificuldade, embora ele o tivesse tentado, em estabelecer uma unidade na escrita de Pessoa, nomeadamente nos textos do pensador, o que origina “(…) uma nunca terminada teorização da escrita-na-pessoa-de-outro.” (p.15)
Referem-se, ainda, outros críticos, como Eduardo Prado Coelho - cuja posição parece ir de encontro à de José Gil - ao falar de uma “situação intervalar”, para o caso dos heterónimos, se bem que a posição tentada pelos autores é bem outra e, essa sim, apoiada nas diretrizes poéticas do século XIX, onde figuram poetas como Keats ou Rimbaud os dois servindo como exemplos de uma “(…) dissolução poética do autor (…)” (p. 16).
Assim, os editores dos textos, compilados em Teoria da Heteronímia, veem mais Pessoa como um recetor de certas influências poéticas inglesas - de que o autor da Mensagem era, como sabemos, um conhecedor e admirador - como, por exemplo, o “egotistical sublime” de Wordsworth:

“Pessoa utiliza deliberadamente a associação direta, que o Romantismo do egotistical sublime generaliza, entre a figura histórica e civil do artista e o universo ficcional da sua obra, com todas as ilusões que tal associação permite criar. Mas sem passar pela fraude ou pela mistificação.” (p.17)

A figura do autor torna-se simultaneamente personagem, ou seja, as duas entidades coabitam num mesmo plano ficcional, uma vez que, julgamos nós, talvez o real, em Pessoa, se encontre apenas na existência de um nome civil, já que é o próprio quem no-lo diz na Tábua Bibliográfica, surgida na presença, em 1928, e que, agora, se publica em Teoria da Heteronímia:

 “(…) a heteronímia é do autor fora da sua pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu. (…) (Se estas três individualidades são mais ou menos reais que o próprio Fernando Pessoa – é problema metafísico, que este, ausente do segredo dos Deuses, e ignorando portanto o que seja realidade, nunca poderá resolver.).” (pp.227-29)

Por conseguinte, talvez faça menos sentido dizer que a diferença entre o heterónimo e o ortónimo decorre da oposição entre o nome próprio (do autor) e o inventado, como se refere na página 19: “(…) Assim passam o nome inventado e o nome verdadeiro a coexistir no plano complexo de uma realidade que os inclui a ambos, o inventado ganhando realidade, e o verdadeiro parecendo ficcionalizar-se.” E isto porque, mais adiante, se diz que é nessa mesma Tábua que Pessoa “(…) estabelece com toda a clareza a diferença conceptual entre o autor Fernando Pessoa e o poeta com o mesmo nome que é parte do sistema de poetas (Bernardo Soares ainda não é citado) (…).” Se todos (os poetas) estão no mesmo “plano de autoria” dificilmente se poderá dizer que há um “verdadeiro” que parece “ficcionalizar-se”. Aliás, prosseguindo a leitura deste estudo, acabamos por concluir que “(…) o nome do autor está ligado ao conjunto da sua obra, e, se esse conjunto variar, o sentido do nome do autor varia também. (…) Portanto, à luz desta definição do autor em função da sua obra, há uma diferença óbvia entre Pessoa e o ‘ortónimo’ Fernando Pessoa: o primeiro é um autor, o segundo o nome de um autor. Pessoa é um autor que se distingue daqueles autores que pela sua mão assinam, e se distingue mesmo de um deles que usa o seu nome próprio.” (p.21)
Ora, de acordo com as palavras dos editores de Teoria da Heteronímia, e continuando a seguir os seus passos, o que parece evidenciar-se é que, querer encontrar um “nome verdadeiro” para o Poeta, que foi e é Fernando Pessoa, se torna uma tarefa mais ou menos inglória porque, porventura, um dos maiores fascínios da leitura da sua obra advém dessa “ideia de heteronímia”, através da qual, o Poeta é todos os poetas. É nessa anulação da personalidade que a voz poética encontra o seu lugar de irradiação e onde Fernando Pessoa é sobretudo um nome civil, uma vez que, tal como vimos anteriormente, tanto o heterónimo como o ortónimo são ficções criadas por alguém que apenas serve essas mesmas ficções, tomando para si “(…) um estatuto ancilar de executor: ‘Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor’.”( p.22)
O longo prefácio prossegue, depois, não deixando de aludir ao conceito de personagem, através do qual o autor se torna igualmente personagem do seu texto, e que vai de encontro ao conceito de dramaticidade, sobre o qual muitos críticos se debruçaram numa releitura das palavras de Pessoa, nomeadamente Teresa Rita Lopes.        
Outro dos aspetos a merecer observação na obra que aqui se apresenta, e tal como notámos ao início, prende-se com a capacidade de reunir, pela primeira vez, todos os nomes criados por Pessoa ao longo da sua vida, incluindo os heterónimos mais conhecidos como Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos ou António Mora e Alexander Search, mas também o semi-heterónimo Bernardo Soares, alternando com Vicente Guedes, bem como todo um conjunto de “autores-colaboradores”, como é o caso do Barão de Teive, ou de meras personagens sem obra atribuída, para as quais Pessoa deixou, no entanto, assinaturas como, por exemplo, António Vasques, Álvaro Eanes, Aurélio Pereira Quintanilha, entre muitos outros.
Ao todo trata-se, como referem os editores, de uma lista de cerca de 106 nomes fictícios de autores de uma obra original ou tradução, criados por Pessoa, organizados por ordem cronológica, de acordo com a altura em que começam o seu labor “autoral”.  
Para além da lista de nomes encontramos também uma série de textos de caráter reflexivo sobre a heteronímia propriamente dita, entre éditos e inéditos, bem como todo um conjunto de projetos, poemas, histórias e ideias, na maioria das vezes, difíceis de classificar com exceção dos poemas por se encontrarem escritos em verso.
Para concluir, talvez seja ainda altura de tocar dois pontos, para nós, relevantes.
O primeiro ponto diz respeito a uma recolocação do problema da heteronímia, levada a cabo nesta compilação de textos, e que tem como consequência uma proposta de leitura renovada que entende a criação de heterónimos sobretudo como um processo artístico, dentro do qual não cabe a utilização de termos muito rigorosos que, porventura, contribuem mais para o obscurecimento desta questão do que para o seu aclaramento:

 “(…) E é bom não sermos excessivamente puristas quanto à terminologia que usamos para falar desses três e dos muitos outros seres inventados em cujo nome Pessoa escreveu, ou pensou escrever. Segundo cremos, são os princípios que governam a heteronímia e as modalidades do seu funcionamento que convém entendermos para uma melhor apreciação da obra pessoana e até para a nossa própria edificação enquanto leitores ainda dispostos a refletir e aprender.” (p.41).

O segundo e último ponto, que julgamos valer a pena mencionar, surge ligado à “estranheza”, de que nos fala Eduardo Lourenço[1] (2003: 27-28), provocada por Pessoa não só no panorama das letras e da cultura nacionais, mas também internacionais.
Talvez esse efeito de “estranheza” seja, hoje, menor, porquanto o que há nele de desajustamento possa atualmente compreender-se melhor do que no tempo em que nasceu e viveu Fernando Pessoa. A sua proposta passa por uma questionação quer do lugar do autor, quer da obra e quer, ainda, da linguagem utilizada, como estando todos envolvidos num processo artístico complexo que conhece, também ele desenvolvimentos e manifestações complexas mas que, apesar de tudo, não são já, nestes dias, tão bizarros como antes. O próprio autor terá tido essa consciência quando, num dos textos aqui reunidos, chama a atenção para o facto de ainda estar por vir alguém igual a si e que aquilo que estava a viver também outros iriam viver como sinais de um mundo em rápida transformação, fruto de múltiplas e variadas metamorfoses próprias da velocidade e dessa impressão – mais possível hoje do que outrora – de que se pode estar em vários sítios ao mesmo tempo e da qual a internet é, porventura, o exemplo mais flagrante. Portanto, Fernando Pessoa foi, como podemos confirmar, alguém que esteve adiantado em relação ao tempo em que viveu e que terá conseguido, através do processo heteronímico, um efeito de multiplicação e ampliação da personalidade só provavelmente igualável aos mecanismos de expansão cósmica, o que o levou a usar a já conhecida expressão: “Sê plural como o universo!” (p.133) 




[1] Eduardo Lourenço, Pessoa Revisitado, Lisboa, Gradiva, 2003.

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