segunda-feira, 22 de julho de 2013

TI JOAQUIM LEITÃO
                   Para o João Barata Leitão

     Um amigo meu, romancista, assevera num dos seus romances que todos os indivíduos nascem com uma queda qualquer. Eu acho que tem razão e acho até, que há indivíduos que nascem com várias quedas E outros, também, apenas para serem vítimas de quedas, entre as quais a do cabelo que deixa marcas irreversíveis.
     Ti Joaquim Leitão era um desses homens com várias quedas, e durante a vida teve muitas; porém, a sua queda para a pirotecnia ganhou a todas as restantes e foi como fogueteiro que se havia de distinguir. De fogo rijo, de rebentamento com estrondo, que, se possível, pudesse fazer-se ouvir nas aldeias das proximidades.
     Naquele ano, o S. João foi comemorado na noite de 23 de Junho como sempre, mas teve a particularidade de, para além das fogueiras e do tradicional bailarico, contar com a arte do pirotécnico Joaquim Leitão, que quis com o seu vasto saber abrilhantar os festejos do santo mais popular na Mata, apesar de S. Pedro ter capela, imagem com as conhecidas chaves do céu e ter direito a festa autónoma pela Páscoa. Hoje, já não com a regularidade doutros tempos.
     Ti Joaquim Leitão era de poucas falas. Distinguia-se por ser um homem de acção, ou seja, um fazedor, como os poetas tanto gostam de dizer. Muito magro, meão de altura como um tal Manuel Maria, usava quase sempre o seu fato-de-macaco, azul, e um boné que lhe protegia a calva do frio e do calor, do sol e da chuva. E até do vento.
     Naquele ano – por razões que desconheço -, o S. João foi festejado no largo do “Capelão”, Manuel Bernardo, que também emprestava a alcunha à taberna da qual era proprietário. O largo, que ainda não teria nome, era então muito diferente: o café do Fernando só surgiria décadas depois; e, no canto do terreno, havia uma figueira enorme, que dava sombra para a depois chamada rua de S. Sebastião. Jogava-se por ali muito ao fito, que era o nome dado ao chinquilho na nossa aldeia. E grupos de rapazes vinham beber o seu copito ao “Capelão”, que tinha uma filha jovem e que ajudava nas lides da taberna.
     Muito metido consigo mesmo, outros diriam ensimesmado, entrava na taberna, bebia o seu corpo de tinto no prata e voltava para casa, onde exercia a sua profissão de barbeiro, que os cabeleireiros só vieram mais tarde, quando os homens começaram a barbear-se em casa. E a ida à taberna do Prata, que depois também virou café, era frequente durante o dia, não fosse o vinho azedar.
      Naquela noite de S. João, com o largo cheio de homens e mulheres, rapazes e raparigas e garotada, foi grande a animação. Porém, esta festa genuinamente popular teve um epílogo de monta. “Atenção”!, pedia a organização, chegou a hora de arder a peça feita pelo ti Joaquim Leitão. E com a mesma solenidade era feito o aviso de que havia uma bojarda para rebentar no fim da peça. O artefacto começou a rodar, produzindo muito fumo e aquele cheirinho característico da pólvora. Por vezes era tanta a luz e de tantas cores, que havia pessoas que comparavam esta peça de pirotecnia com o céu aberto. Tal era o deslumbramento popular!
     E como tudo tem de ter um fim, ouviram-se alguns silvos prévios e momentos depois o grande estrondo. Houve quem garantisse que as casas tremeram e que o som do rebentamento se ouvira na ribeira a vários quilómetros de distância. Eu guardei apenas o sorriso esfíngico de ti Joaquim Leitão, que, na juventude, teria lido o “Livro de S. Cipriano”.
    

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