JOÃO
BARRIGANA
Homem de excessos, acertou cedo as contas
com o Criador; como, de resto, já tinha acontecido com os irmãos. Terá chegado
aos setenta, pouca idade para os tempos que vão correndo.
Apesar da diferença de idades,
tutuávamo-nos e conversámos muito. Cada qual com a sua pedra no bolso e vá lá
saber-se porquê. Talvez a política, mas o que é um facto é que nunca discuti
política com o João Faustino, apesar de ter sido durante vários anos presidente
da junta de freguesia da Mata, que agora é dos Escalos de Baixo e Mata, devido
à engenharia relvas.
Gaguejava muito, mas ninguém ficava sem
resposta. Dizia-se que ficou gago devido a um coiçe de burro, quando ainda era
criança. Aprendeu uma profissão, emigrou, construiu um edifício polivalente,
que servia de café, salão de jogos, salão para eventos e casa de habitação. O
café do “Barrigana”, a dois passos do Largo do Rossio, onde outrora se esperava
pacientemente um cântaro de água, nos dias longos do verão, dava à Mata uma
nova centralidade.
Nunca cheguei a saber se foi eleito como
independente ou numa lista do PSD ou do PS. O que posso dizer é que a junta de
freguesia era o João Barrigana, ou João Faustino, que para o caso pouco
interessa, que tinha coadjuvantes mas que a personalidade do presidente
eclipsava. O que nem era mau nem bom, porque o importante era fazer obras e creio
que o João Barrigana mandou fazer algumas e parece que chateava nas reuniões da
assembleia municipal.
Uma vez perguntei a meu pai: “em quem é
que vai votar, pai?”, que me respondeu muito prontamente: “vou votar no João
Barrigana, que quando fui operado fez o favor de me ir dar sangue”. E contra
factos não há argumentos. A resposta de meu pai desarmou-me e qualquer
discussão não faria mais sentido. E creio que terá votado sempre no João,
parente afastado por afinidade, que lhe dera sangue, numa das curvas apertadas
da vida.
Comigo a coisa piava mais fino. Quando o
encontrava sentado ao balcão do café, agarrado à sua bejeca, tartamudeava
sempre algumas palavras, quase sempre imperceptíveis, mas que eram invariavelmente
uma pequena mas inofensiva provocação. Estava-lhe na massa do sangue; porem, nunca
lhe quis mal por isso. Que a terra lhe seja leve!
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