Os “Fialhos” de Brandão: subsídios para
a construção de um retrato de Fialho de Almeida, a partir das “Memórias”, de
Raul Brandão
Filipa Barata
O presente texto segue de perto – apesar
de algumas modificações que se consideraram relevantes para a temática deste
congresso – uma parte do trabalho anteriormente por nós desenvolvido em
Dissertação de Mestrado[1], e
que tem na sua base as páginas dedicadas, nas Memórias, por Raul Brandão ao
retrato de Fialho de Almeida.
Importa ainda notar que o texto inserto
nas Memórias de Raul Brandão é um dos
poucos, entre a escassa bibliografia existente sobre o autor de Vila de Frades,
que nos permitem traçar algumas linhas da feição humana, mas também literária
de Fialho que é, porventura, uma das figuras mais emblemáticas da cultura
portuguesa da primeira metade do século XIX.
Porém, e antes de avançarmos, importa referir
a atenção crescente que tem sido dada a este autor, merecendo especial destaque
o ensaio de Isabel Cristina Pinto Mateus[2], pela
análise atenta e sensível que faz de alguns aspectos de obra fialhiana,
infelizmente nem sempre bem recebida quer pela crítica do seu tempo, quer pela
crítica posterior. Tal como nota a autora, “(…) importa [re]descobrir o rosto
do autor, tão desfigurado ao longo dos tempos que hoje quase nos parece
irreconhecível: uma tarefa difícil quando esse rosto é, como o de Jano, de
natureza dúplice e, portanto, naturalmente esquivo ou contraditório”[3]. Como
se vê, estas palavras vão ao encontro de uma das principais dificuldades que
envolvem o estudo da obra do autor d’Os
Gatos: a intrincada relação entre o homem e a obra, ambos tão difíceis de
separar, tornando-se o homem quase sempre na matéria da própria escrita.
Assim, centremo-nos no objecto do nosso
trabalho: em que medida nos pode ajudar, hoje, o retrato de Brandão a traçar um
perfil de uma figura tão contraditória como a de Fialho de Almeida? De que
maneira a visão do autor das Memórias
vai ao encontro de um conjunto de características que encontramos na obra de
Fialho e que são reflexo da sua personalidade? Neste sentido, e porque aquilo
que se torna fundamental é sobretudo o contributo que podemos dar para a (re)construção
de uma figura onde se cruzam diversos estilos e formas literárias, vejamos como
o texto de Brandão vai ao encontro dessa contradição que está na base da
personalidade e da obra de Fialho.
Aproxime-nos,
então, do retrato feito por Brandão nas suas Memórias:
Fialho não é este janota de pálio
rico, com uma jóia tão grande que parece falsa na gravata de veludo. Fialho era
outro estranho tipo, intratável e pobre, com o pêlo ralo e a boca enorme cheia
de sarcasmo. Um príncipe de gabinardo, que fazia cair as peças do alto do
galinheiro, a um gesto seu irrespeitoso. Seguia-o a malta atónita de matulas
suspeitos e jornalistas de ocasião, que deslumbrou de sonho e atascou em sonho.
– Fialho! Fialho!... – Esses
aplaudiram-no e amaram-no… Esquecidos do frio e da pobreza, não despegavam os
olhos daquele sonho desconforme. Fialho! Fialho!... – Depois sumia-se num
terceiro andar, ou procurava os pobres que não pedem: só a mão sai da noite e
implora[4]
No primeiro volume das Memórias encontra-se uma fotografia de
Fialho de Almeida, assinada por baixo com o seu nome e provavelmente oferecida
por ele ao autor. Nela vemos apenas a imagem física de um homem – nem sequer de
corpo inteiro, mas apenas um busto – vestido com casaco e lenço (?) armado ao
pescoço. Mas, o que surge com maior relevo aí é o rosto do retratado: o perfil
ligeiramente de lado mostra-nos uma figura com barbas e olhar distante. Um
semblante triste e sério onde, após o confronto com o “outro” retrato, podemos
ler alguma desilusão. Ora, é esse “outro estranho tipo” que Brandão nos
pretende dar a ver, mostrando, desde logo, o contraste entre a imagem exterior
– sobretudo quando aponta para as características da fotografia – e o lado
interior de uma figura deambulante que, ao contrário de outros autores do seu
tempo, cultivava uma postura de vagabundo – recorde-se, a propósito, um dos
títulos que deu a uma colectânea de textos da sua autoria, Jornal dum Vagabundo -, não alinhando, assim, com os grupos de
intelectuais.
Notemos como o retratista parece viver com
a convicção de que só ele conhece o retratado, pelo menos a um nível de
profundidade que procura transmitir, projectando-se também ele (retratista) na
emoção com que executa o retrato. A repetição da exclamação (“Fialho!
Fialho!...”) seguida de reticências, ilustra bem o apreço pela imagem do homem
que recusava a pertença às elites intelectuais e que se fazia acompanhar por
marginais. Mas, por outro lado, há também aí uma espécie de sentimento contido,
onde as reticências deixam antever ao leitor tudo o mais que se poderia dizer e
não se diz. São, ainda, também as reticências que dão, ao mesmo leitor, a
possibilidade de imaginar não a figura física do retratado, mas sobretudo o seu
modo de agir e de ser, vendo-o como um sonhador desmesurado: “Seguia-o a malta
atónita de matulas suspeitos e jornalistas de ocasião, que deslumbrou de sonho
e atascou em sonho”.
Havia uma velha – nunca mais me
esquece – ali à porta do Montepio, que fazia parte do muro alto e espesso, e a
quem ele, ao dar-lhe esmola, afagava a cabeça… Depois, amargo, feroz,
insuportável, ei-lo tornava com sarcasmos, transtornando as figuras
decorativas, cheias de veneras, que à sua voz desatavam às cambalhotas como
palhaços[5]
É um ser oscilante este Fialho que tão
depressa é capaz de um gesto de ternura como, logo a seguir, enche a boca de
sarcasmo para desferir golpes verbais sobre aqueles que o desgostam pelas
atitudes que tomam. Esta maneira de estar não parecerá, de resto, estranha aos
seus leitores mais atentos que não terão dificuldade em reconhecer essa postura
na voz autoral de uma grande parte dos seus escritos como é, por exemplo, o
caso de Pasquinadas ou Vida Irónica, entre outros.
Vi-o exasperado, vi-o atordoado
de frases, como quem quer fugir ao próprio fantasma. Vi-o mergulhar numa
absorção dolorosa, e desaparecer na noite em correrias que duravam até de manhã
pelos bairros escusos ou pelas azinhagas de crime, num debate perpétuo de que
saía lívido, exausto, e com a máscara transtornada. Este que fala do seu vinho:
- Livros?... O que eu trato de editar é um vinhinho branco lá de Cuba… - este
que vem, de quando em quando, a Lisboa deslumbrar-nos com um novo e horrível
fato, é outro Fialho, que talvez tenha saudades dessa vida absurda de outros
tempos…[6]
A imagem decompõe-se à medida que o
retrato se escreve, assistindo o leitor ao desdobramento da figura em vários
planos, através da referência ao pronome demonstrativo “este”, em “Este que
fala do seu vinho” ou em “este que vem, de quando em quando, a Lisboa”, o que
quase faz lembrar a entrada numa cena teatral. Mas, mais do que a referência a
uma figura encenada e composta por alguns exageros, vale a pena notar neste
trecho o facto de o processo de decomposição utilizado pelo retratista poder
constituir uma marca do seu expressionismo literário e estético, o qual não
seria estranho ao próprio retratado enquanto autor.
Outro aspecto que vale a pena ter em conta
nesta passagem é a recorrência, por parte do narrador, a uma estrutura
anafórica (“Vi-o exasperado, vi-o atordoado de frases, como quem quer fugir ao
próprio fantasma. Vi-o mergulhar numa absorção dolorosa”) que situa o texto,
muitas vezes, próximo de uma estrutura poética, onde a repetição intensifica
aquilo que se quer transmitir sem nada acrescentar ao conteúdo, ao mesmo tempo
deixando entrever o pulsar daquele que retrata, através dessa insistência com
que persegue certos traços da personagem:
Fialho! Fialho!... Pronuncio
este nome e diante de mim desfila o assombro, panfletos, a obscenidade e o
génio – farrapos arrancados a ferro e tão vivos que mal ouso tocar-lhes – o
estoiro duma bexiga de entrudo – ironia e esgares. E logo gritos! e agora
gritos!... Ouço a dor, sinto-a sempre através da forma imprevista, duma audácia
e dum ritmo incomparável, escorrendo sonho, aflição, miséria, sinto-a até nos
ímpetos de mau gosto, nos pontapés aos leitores surpreendidos e irritados. Está
diante de mim aquela boca enorme, aquela figura de gabinardo e chapéu mole que
nas noites de tristeza e abandono me dizia: - O que eu sofri! O que eu sofri… -
Vejo-o sempre invejar o barqueiro louro e sardento de que fala nos Gatos, belo como um efebo à proa do seu
barco. – Como eu queria ter saúde e ser forte![7]
Veja-se como o sujeito se agita, sendo ele
quem pronuncia. “Fialho! Fialho!...”. Assistimos a uma espécie de invocação da
figura, num sentido quase religioso, em que o acto de pronunciar ou chamar pelo
nome faz aparecer a imagem da pessoa. E nisso há também um interessante jogo
temporal: já não vemos o sujeito referir-se ao passado, mas antes falando no
presente, o que nos pode levar a perceber uma concomitância entre o acto de
recordar e a própria escrita. De repente, a figura como que abandona a bruma,
pondo-se diante dos olhos do escritor, mas também do leitor e ficando aí
reduzida aos seus pormenores essenciais: “Está diante de mim aquela boca
enorme, aquela figura de gabinardo e chapéu mole”.
Mais uma vez, verifica-se o recurso a uma
linguagem poética, através de imagens expressivas, que retomam aspectos
sombrios e que, de vez em quando, fazem recordar certos passos do Húmus, sobretudo, porque também aqui o
sujeito se assemelha a uma espécie de caixa de ressonância, através da qual
sobrevivem os ecos daqueles que se recordam. A voz do sujeito torna-se quase
indistinta da do retratado; já não é Fialho que ouvimos, mas antes Brandão –
note-se, sobretudo, a utilização de formas verbais na primeira pessoa,
“pronuncio”, “ouço”, “sinto(-a)”.
Com o mesmo ímpeto continua Brandão:
Deu-lhe Deus o mais rico
quinhão que imaginar se pode, a língua incomparável para exprimir a quimera e a
dor, e esse macaco sem fé esbanjou-a com o mais absoluto impudor: serviu-lhe
para a chacota. Transtornou tudo, engrandeceu tudo, riu-se de tudo. As
descrições perderam proporção, as figuras a realidade, transformadas em figuras
de dor ou de grotesco; a própria cidade ressurgiu a uma tinta lívida de
antemanhã, com a casaria a escorrer vício e aspectos tétricos… É isto sim, mas
isto criou-o ele de pobreza e desespero, criou-o de gritos que nunca ninguém
lhe ouviu. – E maior! ficou maior! A sua obra só tem outra que se lhe compare,
a de Camilo. Exigem-lhe um livro harmónico – Os Cavadores. Porque é que toda a gente reclama dos outros aquilo
de que eles são incapazes? A obra de Fialho não podia ser senão esta, aos
arrancos e enorme. Fialho via os pormenores através duma lente, e deturpava
tudo, deformava tudo, dando génio à própria obscenidade[8]
Tal como a obra de Fialho, também o seu
retrato parece ser feito com “arrancos” emotivos, onde se detecta a
identificação entre o retratista e o retratado, sobretudo, se tivermos em conta
que também em Brandão se desenvolve uma estética da dor e do grotesco. A mão
expressionista que procura os tons negros, a miséria e a pobreza nos seus
aspectos mais degradantes vai o autor buscá-la a Fialho, uma vez que não raro
vemos surgir em Brandão personagens como a da prostituta ou do ladrão.
Porém, a contrastar com a faceta
sarcástica e provocadora, encontramos ainda um outro Fialho: “Fialho, se o
virassem do avesso, escorria ternura… É também um tímido capaz de todas as
audácias, e que sai da doença e do isolamento com desespero e escárnio. Esta
figura tão conhecida de todos nós, não é a exacta expressão da sua alma. Ainda
hoje ninguém se entende…”[9] Por
aqui se confirma, portanto, o que já tínhamos referido sobre as múltiplas e
antagónicas faces do retratado, mas vincando-se a contradição entre o dentro e
o fora, que coloca a figura numa outra dimensão, espécie de mito que se
constrói sem se saber ao certo onde começa a verdade e acaba a mentira.
Não se esquivando ao ponto de vista de
terceiros, o autor procura, ainda, alargar a imagem do retratado através de uma
multiplicidade de perspectivas, onde o uso do pronome indefinido “outro”,
ilustra particularmente bem o desejo de aprofundar o interior da figura. A
espécie de gradação que acompanha a repetição do pronome – “(…) de outro Fialho
respeitoso, que não podia suportar o exagero alheio, e de outro, de outro
maior, de outro espectro (…)” - denota a tentativa de se adequar o melhor
possível à realidade que se descreve ao mesmo tempo que se dá conta disso ao
leitor. Ao invés de escolher uma expressão única, o autor expõe a sua própria
busca. Não se trata de um retrato homogéneo, mas antes de um retrato composto
por vários traços e camadas:
Silva Teles, por exemplo,
conheceu um estudantinho aplicado e medíocre, que se chamava José Valentim
Fialho de Almeida; há ainda talvez quem se recorde dum moço de botica reservado
e triste; e, o que é mais extraordinário, de outro Fialho respeitoso, que não
podia suportar o exagero alheio, e de outro, de outro maior, de outro espectro,
que vem sentar-se a meu lado na sua trágica mudez. No fundo talvez tudo aquilo
fosse dor. No fundo, bem no fundo, quando irrompia numa frase cruel, não era
aos outros que dilacerava, era a si próprio que se dilacerava, e tão a sério
que todos o víamos sangrar. Reparem: pouco a pouco a figura range de dor[10]
Outro dado importante reside na
expressividade da linguagem, onde o verbo “sangrar” visa não só colorir, mas
também criar a imagem, em termos estilísticos, do sofrimento da personagem. A intromissão
do eu, especialmente importante nessa convocação da figura para o presente da
escrita – “(…) de outro Fialho respeitoso, (…) que vem sentar-se a meu lado na
sua trágica mudez”, faz renascer a personagem, tornando-a actual e, salvando-a
do estatismo temporal. O apelo ao leitor, através da forma verbal “Reparem”,
inclui o próprio leitor na actualidade da escrita, mais: há como que um
cruzamento entre o eu, o retratado e o leitor. A personagem retratada sai da
bruma do passado para surgir recreada no presente e, neste sentido, não é já
aquele que foi “realmente”, mas antes aquele que o retratista apresenta. O
apelo ao público é para que veja aquilo que ele (autor) mostra, tal como o
pintor que finaliza o seu quadro com as últimas pinceladas, é o produto da sua
obra que está sob avaliação e não o homem retratado propriamente dito.
A noção de que Fialho é uma personagem
contraditória é constante ao longo de todo o retrato. Daí que assomem aqui e
ali repetições dessa ideia, sendo notória a consciência da existência de uma
máscara – de que, aliás, o autor já falara na parte final do Prefácio ao
primeiro volume – que esconde, porventura, o eu verdadeiro. Esta questão
coloca-nos, ainda, perante uma outra não menos importante que é justamente a de
saber se a máscara constitui uma mentira ou se, pelo contrário, consegue ser
mais verdadeira que a realidade em si.
Da sua existência oculta faz
parte uma figura de dor, calcada e recalcada, sobre a qual outra se encarniça
com desespero. Talvez seja a verdadeira… Contentemo-nos em fixar duas ou três
aparências, apontando neste canhenho algumas anedotas frívolas… Se ele pudesse
gritar, gritava ainda. Dessa figura contraditória restam farrapos – mas que
farrapos! dessa luta suprema existem vestígios, que nunca encarei sem espanto…
Vi-o algumas vezes ao amanhecer num 3.º andar no Arco do Bandeira, quando ele
caía exausto sobre a banca de tortura, à luz dum candeeiro de petróleo, com um
frasco de álcool ao lado e o cobertor enrodilhado nos pés. A máscara lívida
estava de todo mudada. Era outro! era outro! Surpreendi-o em noites, nos giros
sem destino pela Graça, pela Penha, pelo Monte – quando o seu dedo apontava
boqueirões de treva, tropéis de casaria, sítios ermos onde duas ou três
oliveiras torcidas se ajuntam para concertar um crime, ou, pior ainda, nas
horas de amargo descalabro, em que, dorido e sem frases, procurava fugir de si
próprio para muito longe. Não queria então que ninguém o seguisse nas
caminhadas que duravam até ao dia – ele e a dor, ele e a noite! Amigos,
silêncio…[11]
Reproduzir das falas daquele que se retrata
empresta ao retrato não só uma maior vivacidade, mas também um tom mais
coloquial que permite aproximá-lo do presente e fazer com que o personagem
apareça vivo junto de quem o observa/lê. Agora, é o Fialho em discurso directo
que vemos, contando peripécias da sua vida triste e amargurada:
- O que eu
sofri! – dizia ele. – Tiveram-me preso oito anos numa botica ali na Bemposta,
ao pé da Escola do Exército, na idade em que queria viver. Estragaram-me a
vida, encheram-me de desespero. Quando me soltaram, não imagina a minha
alegria! Podia ter sido outro… Ter saúde, ser forte!... O que eu sofri! Duma
vez, no Repórter, o Martins mandou-me
escrever um artigo sobre uma quermesse de fidalgas. Fui e fiz uma troça, e ele
rasgou-me os linguados na cara. Para me vingar, tirando um bocado às noites,
escrevi um artigo formidável para publicar em folheto. Era na ocasião em que
essas peidorreiras arranjavam um bazar para os pobres, que rendeu oitocentos
mil réis. Ora eu descobri por acaso um galego que se juntava com outros e
tiravam todas as semanas meio dia de ganho, para irem ao domingo ao hospital
dar cigarros aos doentes, penteá-los, cortar-lhes as unhas, untar-lhes a cabeça
com banha de porco. É um velho, de barba de passa-piolho, que está sempre no
Largo de Camões. Homem de poucas falas. Tratou-me mal. Tive pronto o folheto em
que comparava essas mulheres, cheias de snobismo, de adultérios e infâmias, com
esse santo desconhecido… Imagine… Perdi o artigo[12]
Detenhamo-nos, agora, na parte final deste
denso retrato em que o autor, em jeito de epílogo, faz a síntese da figura,
sentando-a de novo ao pé de si e parecendo acariciá-la com os dedos, ao mesmo
tempo que reflecte sobre ela. De facto estamos perante um solilóquio – e não
será sempre o mesmo ao longo da obra? – que encontra no retratado um
interlocutor – isto é particularmente visível no parágrafo final - , de quem e
para quem o sujeito fala, sabendo da distância intransponível que os separa:
À figura que se senta ao pé de
mim falta-lhe talvez a rigidez das estátuas. O gabinardo, reparem, está
amachucado e encardido, a fisionomia retrai-se no escuro e só a boca se
salienta, enorme e prestes a escorraçar-nos com gritos e apupos. Atravessou a
vida: foi injusto, foi cruel por vezes, foi amargo. Desatou a rir para não chorar.
Atordoou-se com sarcasmos e frases. Foi incoerente. Obedeceu ao impulso. Não se
pôde furtar a sentimentos que vêm do fundo dos fundos e nos deixam prostrados,
reclamando da morte que nos apavora – enfim! enfim! – o primeiro dia de
descanso bem ganho, ao termo desta discussão que nunca cessa e em que nos
despedaçamos, sem nos compreendermos a nós próprios quanto mais aos outros…
Toda s sua alma, que deixou fragmentada em várias figuras, em todas as páginas
dos seus livros, nos retratos, nos tipos, nas paisagens, no Manuel, em
Guilherme de Azevedo ou na manhã do Tejo, se condensa enfim nesta boca amarga
capaz ainda de nos fulminar de cólera ou de acusar bem alto a vida que lhe foi
impiedosa…
É assim que te vejo ao pé de
mim, com detritos, escorrências, lama, mas tão grande, tão vivo, tão humano,
que para sintetizar a tua vida, só me servem as palavras com que um espectador
ilustre saúda o Hamlet no fim da representação: - Boas-noites, meu príncipe, és
um homem, o homem e todo o homem![13]
No volume III das Memórias surge ainda uma secção de texto dedicada a Fialho, e cujo
título é justamente “Fialho de Almeida”. Nela se registam pequenos apontamentos
sobre a figura que resultam da apreciação de terceiros – por exemplo, logo no
início, Brandão refere-se a Gualdino Gomes, transcrevendo depois palavras suas
em discurso directo:
Gualdino Gomes fala das
pretensões de Fialho janota – dum Fialho com uma grande corrente de ouro e uma
esmeralda de brasileiro na gravata, e conta que ele apareceu num dia de tourada
no Martinho com uma camisa vermelha que teve de tirar pela troça que lhe
fizeram. Acrescenta isto:
- Julgo que nunca, nem com a
própria mulher teve relações senão de amizade. Os seus quartos de dormir eram
separados, um em cada extremidade da casa e pela manhã quando ela lhe batia à
porta ele dizia sempre: - Espere, menina, que ainda não estou vestido[14]
O registo anedótico é aqui parte
integrante do retrato conferindo-lhe uma nota menos carregada e emprestando-lhe
dinamismo precisamente porque se tenta fazer dele um espaço aberto, para onde
podem convergir outras formas discursivas, como a anedota, o pequeno
apontamento, a reflexão ensaística, etc.
Por outro lado, o riso pode ter um efeito
catártico que ajuda a aliviar a tensão criada pelos tons negros e sombrios.
Dir-se-ia, que a anedota funciona como espécie de pincelada clara que, de
repente, se atira para o meio do retrato. De teor semelhante é esta passagem:
Uma noite, no café, G…
aludiu à sua obra, e logo do lado Fialho acudiu:
- A tua obra, bem sei… Vinte e
cinco cartas a vinte e cinco amigos pedindo vinte e cinco tostões emprestados.
G… embezerrou. Mas passados
minutos aproveitou uma pausa no diálogo para perguntar com indiferença ao
Fialho, que tinha casado rico há pouco com uma mulher que gastou a vida a
esperá-lo no fundo da província:
- Ó Fialho, fazes favor de
me dizer que horas são… no relógio do teu sogro?[15]
Contudo, no que se refere à secção do
volume III, importa anotar a presença de um pequeno excerto retirado de um
jornal que constitui não só uma achega para a figura do retratado, mas também
um motivo de variedade para a elaboração técnica do retrato:
O seu amigo Xavier da Mota
diz num artigo:
Um parente meu muito
querido, que colaborou nas fainas agrícolas de Fialho, dizia-me das rebeldias
do seu temperamento, na rigidez frequente das suas maneiras, ao tempo
constatando a solicitude dele pelos seus servidores, a exactidão das suas
contas, e a benevolência quase sempre calada dalguns dos seus actos, como se
achasse mesquinho proferir palavras que importassem a humilhação de alguém ou
reflectissem a própria bondade
(Popular, 3
de Abril de 1911.)[16]
Concluindo, e na esperança de que o
presente texto possa dar a ver alguns aspectos menos conhecidos sobre Fialho de
Almeida, torna-se importante referir que, apesar de uma visão, por vezes,
afectada pelo sentimento e pela emoção, o retrato que Brandão traça do autor de
Vila de Frades é, porventura, um dos que melhor permite fazer a articulação
entre duas faces em contradição, a do homem e a do escritor, de um dos autores
que, provavelmente, melhor ilustra a transição do século XIX para o século XX
na literatura portuguesa, sobretudo, no que toca à criação de formas literárias
novas e marcadas por uma voz que assume perante o leitor o seu próprio sofrimento.
Por outro lado, gostaríamos ainda de
referir, que não foi para nós tarefa simples a escolha dos excertos de texto a
incluir neste trabalho, daí que, apesar da extensão de alguns deles, tivéssemos
optado pela sua utilização, na expectativa de mostrar ao leitor a mestria da
pena de Brandão, nomeadamente, no que concerne ao uso de uma espécie de
claro-escuro, técnica que permite ver, quase em simultâneo, no retratado, quer
os seus aspectos mais luminosos quer os seus aspectos mais sinistros.
Notas:
1 Barata,
Filipa Mendes. 2009. “O Lugar do eu e do(s) outro(s) nas Memórias de Raul Brandão”, (Dissertação
de Mestrado em Cultura Portuguesa). Lisboa: Faculdade de Letras.
2 (Mateus, 2008)
3 (Mateus, 2008: 21)
Mateus, Isabel Cristina Pinto. 2008. «Kodakização» e Despolarização do Real –
Para uma poética do grotesco na obra de Fialho de Almeida. Lisboa:
Editorial Caminho.
4(Brandão,
1998, a: 66)
5
(Brandão, 1998,vol.I:66)
6
(Brandão, 1998, vol. I: 66-67)
7 (Brandão,
1998, vol. I: 67)
8 (Brandão,
1998,vol.I: 67-68)
9 (Brandão,
1998, vol. I: 68)
10
(Brandão, 1998,vol. I: 68)
11 (Brandão,
1998, vol. I: 70-71)
12 (Brandão,
1998, vol. I: 70-71)
13 (Brandão,
1998, vol. I: 78)
14
(Brandão, 1998, vol. III: 147)
15 (Brandão,
1998, vol. I: 43)
16 (Brandão,
1998, vol. III: 150)
Brandão, Raul. 1998. Memórias (vol. I,
vol. III). Lisboa: Relógio D’Água.
[1] O Lugar do eu e do(s) outro(s) nas Memórias de Raul Brandão, Tese
de Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa em Março
de 2009.
[4] (Brandão, 1998,vol.I: 66)
[5] (Brandão, 1998,vol.I:66)
[6] (Brandão, 1998, vol. I:
66-67)
[7] (Brandão, 1998, vol.I: 67)
[8] (Brandão, 1998,vol.I:
67-68)
[9] (Brandão, 1998, vol. I:
68)
[10] (Brandão, 1998, vol. I:
68)
[11] (Brandão, 1998, vol. I:
70-71)
[12] (Brandão, 1998, vol. I:
70-71)
[13] (Brandão, 1998, vol. I:
78)
[14] (Brandão, 1998, vol. III:
147)
[15] (Brandão, 1998, vol. I:
43)
[16] (Brandão, 1998, vol. III:
150)
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