TI
CHICO MELGO
Morava ao cimo da minha rua e foi sempre um
vizinho exemplar. Tinha uma forma muito própria de pisar o chão, o que me faz
pensar que teria dado um excelente bailarino. Sempre muito magro, quando sóbrio
e com o fato domingueiro vestido, era um homem elegante.
Durante a semana trabalhava e não exagerava
no álcool. Saudava as pessoas com sobriedade e com um sorriso amigo. Recordo-me
bem do sorriso fino e maroto de Ti Fcisco Melgo - sim, Fcisco, porque na Mata sempre
houve a tendência para suprimir fonemas às palavras ou para certas corruptelas
-, ao cruzar-se comigo ou com as demais pessoas.
Este homem trabalhador e pacífico, quando
ingeria álcool em excesso, sofria uma transfiguração radical: energia
desmesurada, correrias, vernáculo do mais puro e duro. Nas tardes de domingo ou
quando regressava de Castelo Branco, quando à cidade tinha que se deslocar, já
bem bebido, tinha o seu quê de mefistofélico. A malta nova, que lhe conhecia a
natureza do vinho e da aguardente, provocava-o com um som idêntico ao emitido
pelos bodes. Ti Fcisco Melgo corria de um lado para o outro, dizendo todo o
tipo de impropérios, que, sei bem. O leitor não terá dificuldades em adivinhar.
Quando regressava embriagado de Castelo
Branco, ria-se, gesticulava, corria atrás da pequenada; as mulheres, todas
muito pundonorosas, fechavam-se em casa, mas ficavam de ouvido bem atento aos
desmandos verbais de Francisco dos Santos, que era este o nome e o apelido de
registo e baptismo.
Numa noite de Inverno, perante a chuva de
impropérios, o cabo da GNR, Marcos Sobreiro de seu nome, quis levá-lo para o
posto da dita GNR para lhe dar amoníaco a cheirar, porque o amoníaco faz
espirrar e acelera o efeito do álcool. Ti Fcisco Melgo, com uma graça quase
infantil, responde ao cabo, com o seu sorriso escarninho: “Leve-me às costas,
senhor cabo, que é o mesmo que dizer, leve-me às cavalitas. É óbvio que ninguém
resistiu a uma boa risota.
Morreu um pouco como viveu. Numa noite de
Inverno, com muita aguardente no corpo. Ficou na rua e o frio não lhe perdoou.
Mas perdoo-lhe eu, caro leitor, que este homem, que tocava harmónio, acabou por
dispor bem muitas gerações de gente da Mata. Se fosse possível, gostava de lhe
enviar um sorriso, para lhe agradecer a alegria que tantas vezes a todos
proporcionava.
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