TI
MANEL DA CRUZ
É rara a vez que vou à Mata e não me cruzo
com Ti Manel da Cruz, que, se ainda os não tem, deve estar muito próximo dos
noventa anos. Habituei-me a vê-lo passar à nossa porta, ora a pé, ora montado
na sua carroça. Tem sempre mais uma palavra que os simples boa tarde ou bom
dia; e, por isso mesmo, tenho por ele estima e simpatia.
“Ó João, hoje tens cá o teu Manel?”. Era
uma constatação e uma pergunta retórica, porque eu estava ali à mão de semear.
Mas dirigia-se primeiro a meu pai, um dos seus companheiros de sueca, no café
de Manuel Domingos Barata, o Japona. E só depois, me dirigia directamente a
palavra: ”Tás bom Manel, pois sim?”
Ainda agora, já tão avançado na idade,
continua direito que nem um fuso, em cabelo ou de chapéu na cabeça, sempre
muito cordial e digno. O que já não tem, porque o tempo tudo traz e tudo leva,
é força para pegar na bandeira e, com muito garbo, fazer toda a procissão. Foi
voluntário para levar a bandeira, em todas as festas da Mata, desde que não
houvesse promessa a cumprir ou que outro homem manifestasse o desejo de levar
aquele adorno de difícil manuseamento, nos dias de festa com vento. Hei-de
descobrir uma fotografia para ilustrar o que aqui fica dito.
Nas cartas, gostava de ser parceiro de meu
pai, mas também jogava contra ele. Nunca tive notícia de qualquer discussão de
monta e preservaram a amizade até ao fim. Lembro-me de Ti Manel da Cruz passar
e dizer: “Ó João, está cá o teu Manel, hoje não jogas?”. Meu pai apressava-se a
sossegá-lo: “O meu Manel vai-se já embora. Eu já lá vou ter”. E ia, muitas
vezes, ainda antes de eu partir. O gozo de puxar pelas orelhas às cartas falava
mais alto, o que é compreensível, porque era o único entretém destes homens
simples.
Ti Manel da Cruz, a quem o povo alcunhou
de Farinheira, ainda está para dar e durar. Se a saúde não lhe pregar nenhuma
partida, é bem capaz de chegar aos cem. Oxalá que sim!
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