TI
ZÉ MEXE
Tinha a necessidade e o vício do
trabalho. Por isso mesmo, acertou em cheio, quem lhe colou a alcunha “Mexe”. Ti
Zé Mexe era o pai de minha mãe, sabia ler e escrever, mas nunca passou de
trabalhador do campo, lagareiro e mestre de lagar de azeite. Um trabalhador
letrado que ceifou muito, trigo e outros cereais, que malhou muito, milho e
feijão, que podou muitas árvores e limpou muitas oliveiras.
Tive sempre uma afeição especial por este
homem, a quem pedia a bênção a instâncias de minha mãe, mas que tudo retribuía
com austera generosidade. “Anda cá”, dizia ele aos domingos, quando me via. Eu
aproximava-me e dizia: ”Guarde-o Deus, avô” ou “gaurdesdeus”, que era assim que
se dizia na Mata. Meu avô tirava uns tostões do seu porta-moedas de orelhas,
comprado na feira dos Santos, em Alcains, e dizia: “Toma, é para amendoins” e
sorria e retomava o seu lugar no grupo de amigos.
Nunca foi protagonista de uma proeza para
a posteridade. Trabalhou, trabalhou, trabalhou, teve dois casamentos, quatro
filhas e a meia dúzia de netos, ou seja, nada que possa fazer sair um homem da
turba. Mas era respeitado pelas suas qualidades de trabalho e honradez. A
semana tinha seis dias e meio de trabalho e meio dia de descanso, ainda assim,
o tempo suficiente para uma passagem pelas tabernas da Mata, que, na minha
meninice, eram muitas, e para uns copos bem bebidos, que às vezes deixavam
marca na alvura da camisa dominical.
Quando entrava na sua casa e ainda mal
tinha respondido à pergunta “Quem lá vem?”, já o meu avô dizia à minha avó, que
não era a minha avó de sangue, mas que sempre me tratou como neto e eu como
avó: ”Ó Maria, dá uma fatia de pão aos cachopos”. Os cachopos eram os seus dois
netos varões, ou seja, este vosso amigo e o Zé Capinha, que é mais conhecido
por Zé Maceiras. É certo que nunca passámos fome, sempre houve pão e conduto
nas nossas casas, mas aceitávamos o pão com queijo ou com chouriço, que era uma
forma outra de mostrarmos o nosso afecto ao nosso avô.
Produzia algum vinho, sem quaisquer
tratamentos, que era quase sempre palhete e saboroso. Um mês e tal antes de
morrer, passei pela casa de meu avô, já adoentado, já a caminhar
inelutavelmente para o fim, já prestes a entregar o óbolo ao barqueiro, mas
mesmo adoentado fez questão que bebesse mais uma vez do seu vinho. Foi a última
vez que bebi na presença do meu avô.
Daquele vinho, no entanto, ainda bebi
durante mais alguns anos. Com muita parcimónia, religiosamente.
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