TI
JOÃO BALHAU (ASADINHO)
Terá sido este homem bom, com algum jeito
para contar histórias, que me fez as primeiras botas. Recordo-me daquele
corredor onde trabalhava, dias inteiros, sentado numa cadeira de palha, baixa,
e do calçado para consertar arrumado do lado esquerdo do dito corredor e também
à sua mão esquerda. Era o seu posto de trabalho da primavera ao outono, porque
quando estava mais frio ou chovia, trabalhava no forro da sua casa. Sim, uma
espécie de sótão, onde a braseira aconchegava os pés.
Era vizinho de meu avô Manuel Barata, Ti
Careca por alcunha, e também por este facto, passei por ali muitas horas da
minha infância, ouvindo as histórias, mais ou menos apimentadas, da aldeia.
Contava que meu avô, muito dado a crendices, fora consultar uma soldadora que havia
em Castelo Branco e que esta lhe prometera a cura da perna coxa, que coxa havia
de ficar até ao fim dos seus dias. Porém, movido pela fé e pela vontade da
cura, meu avô terá dito ao mestre sapateiro: “Ó João, é desta que vou ficar
curado e vou fazer sozinho a festa do Mártir S. Sebastião!”. E o bom do meu
avô, crente até à raiz dos cabelos, dava passos como se nunca tivesse coxeado.
Sol de pouca dura. Meu avô continuou a coxear e ao Mártir outros fizeram a
festa.
“Faça-lhe umas botas bonitas, mas com
borracha, que sempre duram mais”, disse a minha mãe. “Põe aqui o pé”, dizia o
mestre sapateiro, que, com um lápis, fazia a planta do meu pé numa folha de
papel pardo. “Mas faça-lhas folgadinhas, que o rapaz está a crescer”, insistia
minha mãe. “Está descansada, que vai ter botas por muito tempo”, asseverava Ti
João Balhau. E as botas foram feitas e duraram muito tempo, porque quando o pé
deixou de caber, cortou-se a biqueira à bota e os dedos podiam crescer à
vontade.
Estava ali a poucos metros da taberna do
Prata, que depois havia de ser café e com vários proprietários ao longo dos
anos, onde o nosso homem, roliço, cabelos ondulados e com a sua marreca
profissional, se deslocava célere, a fim de matar a sede. Por vezes, nem tirava
o avental que tão precioso era no exercício da profissão. E depressa regressava
para retomar a obra, que os clientes eram muitos e não havia mãos a medir.
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