Filipa Barata
(Faculdade de
Letras de Lisboa)
Teoria da Heteronímia ou “O Jogo dos
Nomes”?
Teoria da
Heteronímia,
de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, recentemente editada pela Assírio
& Alvim, é uma súmula da heteronímia pessoana e dos olhares que, ao longo
do tempo, se têm debruçado sobre ela. O livro que apresentamos constitui-se,
sob vários aspetos, como um fundamental conjunto de textos escritos por Fernando
Pessoa e seus heterónimos, onde a questão da heteronímia – que, porventura,
constitui o polo mais atraente da obra de Fernando Pessoa - se encontra em
destaque.
Um
dos primeiros aspectos a ter conta é que uma obra vasta e heterogénea como a de
Pessoa que, desde o seu aparecimento e até à morte do seu autor, não cessou de
ter admiradores e leitores, há muito que justificava uma compilação de textos,
onde a questão da heteronímia viesse a ocupar um lugar central. E isto porque,
parece não restarem dúvidas de que a construção heteronímica tem sido não
apenas um dos principais motivos de interesse em relação à obra de Pessoa e,
consequentemente, aquilo que o torna mais conhecido, mas também aquilo que
encontramos na base de todo um trabalho crítico que se ergueu não só em torno
da obra, mas também do autor dela.
Sem
querermos atalhar caminho, no que concerne à matéria deste livro – e não
deixando, mais uma vez, de reiterar a sua necessidade no panorama dos estudos
pessoanos, mas também para os leitores de Pessoa, em geral – gostaríamos de
referir, desde já, que uma das coisas que parecem ficar claras, a partir da sua
leitura, e no que à heteronímia respeita, é o facto de ser Fernando Pessoa o
primeiro autor a colocar em questão justamente a autoria da escrita. O que
subjaz à criação dos heterónimos é uma questão que se pode formular de maneira
aparentemente simples: quem é o autor dos textos escritos sob o nome de
Fernando Pessoa? Sabendo de antemão que Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro
de Campos são heterónimos será que devemos tratá-los autonomamente em relação
ao ortónimo? E o ortónimo será o “poeta verdadeiro”? Como se pode actualmente
entender o que é um heterónimo sem passar pelas teorizações mais antigas que, na
sua grande maioria, tentam explicações de tipo psicologista e que tão afastadas
parecem, hoje, da compreensão sobre a literatura e o texto literário?
Para
estas e outras questões vamos encontrar resposta em Teoria da Heteronímia, desde logo, pela compreensão de que “(…)
todos os géneros literários implicam a constituição ficcional de um autor. “
(p.23). E, mais ainda, no caso de Pessoa, em que a dissolução da personalidade,
defendida pelo próprio, faz com que o nome do autor (Fernando Pessoa) se torne
também ele uma ficção.
Mas
detenhamo-nos, para já, sobre o longo prefácio que acompanha Teoria da Heteronímia, onde é feito um
périplo pelos terrenos da crítica pessoana mais convencional, e cujas
interpretações se colocam, muitas vezes, na esteira da explicação dada por
Pessoa, na carta a Adolfo Casais Monteiro (13-1-1935), defendendo a despersonalização como um processo
capaz de explicar a reunião de vozes de outros no interior do Poeta. Entre os
que partilham esta posição encontram-se nomes como os de José Gil ou Eduardo
Lourenço, o primeiro através do conceito do “espaço interior” (p.13) e, o
segundo, tentando esclarecer o sentido dessa despersonalização através da
criação de “personalizações” (p.14).
Contudo,
há outras posições que, procurando pôr um pouco de lado a explicação de Pessoa,
entendem a questão da heteronímia à luz de um culto das personae, algo comum na
poesia moderna, e que acaba por conhecer posteriores desenvolvimentos com as
poéticas da Vanguarda. Neste sentido, e segundo os autores de Teoria da Heteronímia, as leituras que
têm por base esta perspectiva tendem a desviar-se mais de uma heteronímia vista
como “um jogo de subjectividades” (p.13), encarando-a antes como parte de um
processo artístico próprio dessas poéticas.
Mas,
a revisitação crítica prossegue e, desta vez, para citar Óscar Lopes que
aponta, no caso de Pessoa, para existência de uma personalidade genial, através
da qual se manifestam naturalmente outras vozes.
Depois
cita-se ainda Jacinto do Prado Coelho, que, como notam os autores, afasta-se
das críticas mais convencionais – pese inclusivamente o facto de se tratar de
um dos estudiosos mais antigos de Pessoa e dos que mais terá contribuído para a
divulgação da sua obra – sublinhando a dificuldade, embora ele o tivesse
tentado, em estabelecer uma unidade na escrita de Pessoa, nomeadamente nos
textos do pensador, o que origina “(…) uma nunca terminada teorização da
escrita-na-pessoa-de-outro.” (p.15)
Referem-se,
ainda, outros críticos, como Eduardo Prado Coelho - cuja posição parece ir de
encontro à de José Gil - ao falar de uma “situação intervalar”, para o caso dos
heterónimos, se bem que a posição tentada pelos autores é bem outra e, essa sim,
apoiada nas diretrizes poéticas do século XIX, onde figuram poetas como Keats
ou Rimbaud os dois servindo como exemplos de uma “(…) dissolução poética do
autor (…)” (p. 16).
Assim,
os editores dos textos, compilados em Teoria
da Heteronímia, veem mais Pessoa como um recetor de certas influências
poéticas inglesas - de que o autor da Mensagem
era, como sabemos, um conhecedor e admirador - como, por exemplo, o
“egotistical sublime” de Wordsworth:
“Pessoa
utiliza deliberadamente a associação direta, que o Romantismo do egotistical sublime generaliza, entre a
figura histórica e civil do artista e o universo ficcional da sua obra, com
todas as ilusões que tal associação permite criar. Mas sem passar pela fraude
ou pela mistificação.” (p.17)
A
figura do autor torna-se simultaneamente personagem, ou seja, as duas entidades
coabitam num mesmo plano ficcional, uma vez que, julgamos nós, talvez o real,
em Pessoa, se encontre apenas na existência de um nome civil, já que é o
próprio quem no-lo diz na Tábua
Bibliográfica, surgida na presença,
em 1928, e que, agora, se publica em Teoria
da Heteronímia:
“(…) a heteronímia é do autor fora da sua
pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os
dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu. (…) (Se estas três
individualidades são mais ou menos reais que o próprio Fernando Pessoa – é
problema metafísico, que este, ausente do segredo dos Deuses, e ignorando
portanto o que seja realidade, nunca poderá resolver.).” (pp.227-29)
Por
conseguinte, talvez faça menos sentido dizer que a diferença entre o heterónimo
e o ortónimo decorre da oposição entre o nome próprio (do autor) e o inventado,
como se refere na página 19: “(…) Assim passam o nome inventado e o nome
verdadeiro a coexistir no plano complexo de uma realidade que os inclui a
ambos, o inventado ganhando realidade, e o verdadeiro parecendo
ficcionalizar-se.” E isto porque, mais adiante, se diz que é nessa mesma Tábua que Pessoa “(…) estabelece com
toda a clareza a diferença conceptual entre o autor Fernando Pessoa e o poeta
com o mesmo nome que é parte do sistema de poetas (Bernardo Soares ainda não é
citado) (…).” Se todos (os poetas) estão no mesmo “plano de autoria”
dificilmente se poderá dizer que há um “verdadeiro” que parece
“ficcionalizar-se”. Aliás, prosseguindo a leitura deste estudo, acabamos por
concluir que “(…) o nome do autor está ligado ao conjunto da sua obra, e, se
esse conjunto variar, o sentido do nome do autor varia também. (…) Portanto, à
luz desta definição do autor em função da sua obra, há uma diferença óbvia
entre Pessoa e o ‘ortónimo’ Fernando Pessoa: o primeiro é um autor, o segundo o
nome de um autor. Pessoa é um autor que se distingue daqueles autores que pela
sua mão assinam, e se distingue mesmo de um deles que usa o seu nome próprio.”
(p.21)
Ora,
de acordo com as palavras dos editores de Teoria
da Heteronímia, e continuando a seguir os seus passos, o que parece evidenciar-se
é que, querer encontrar um “nome verdadeiro” para o Poeta, que foi e é Fernando
Pessoa, se torna uma tarefa mais ou menos inglória porque, porventura, um dos
maiores fascínios da leitura da sua obra advém dessa “ideia de heteronímia”,
através da qual, o Poeta é todos os poetas. É nessa anulação da personalidade
que a voz poética encontra o seu lugar de irradiação e onde Fernando Pessoa é
sobretudo um nome civil, uma vez que, tal como vimos anteriormente, tanto o
heterónimo como o ortónimo são ficções criadas por alguém que apenas serve
essas mesmas ficções, tomando para si “(…) um estatuto ancilar de executor:
‘Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi
entre os autores vários de cuja obra tenho sido o executor’.”( p.22)
O
longo prefácio prossegue, depois, não deixando de aludir ao conceito de
personagem, através do qual o autor se torna igualmente personagem do seu
texto, e que vai de encontro ao conceito de dramaticidade, sobre o qual muitos
críticos se debruçaram numa releitura das palavras de Pessoa, nomeadamente
Teresa Rita Lopes.
Outro
dos aspetos a merecer observação na obra que aqui se apresenta, e tal como
notámos ao início, prende-se com a capacidade de reunir, pela primeira vez,
todos os nomes criados por Pessoa ao longo da sua vida, incluindo os
heterónimos mais conhecidos como Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos
ou António Mora e Alexander Search, mas também o semi-heterónimo Bernardo
Soares, alternando com Vicente Guedes, bem como todo um conjunto de
“autores-colaboradores”, como é o caso do Barão de Teive, ou de meras
personagens sem obra atribuída, para as quais Pessoa deixou, no entanto,
assinaturas como, por exemplo, António Vasques, Álvaro Eanes, Aurélio Pereira
Quintanilha, entre muitos outros.
Ao
todo trata-se, como referem os editores, de uma lista de cerca de 106 nomes
fictícios de autores de uma obra original ou tradução, criados por Pessoa, organizados
por ordem cronológica, de acordo com a altura em que começam o seu labor
“autoral”.
Para
além da lista de nomes encontramos também uma série de textos de caráter
reflexivo sobre a heteronímia propriamente dita, entre éditos e inéditos, bem
como todo um conjunto de projetos, poemas, histórias e ideias, na maioria das
vezes, difíceis de classificar com exceção dos poemas por se encontrarem
escritos em verso.
Para
concluir, talvez seja ainda altura de tocar dois pontos, para nós, relevantes.
O
primeiro ponto diz respeito a uma recolocação do problema da heteronímia,
levada a cabo nesta compilação de textos, e que tem como consequência uma
proposta de leitura renovada que entende a criação de heterónimos sobretudo
como um processo artístico, dentro do qual não cabe a utilização de termos
muito rigorosos que, porventura, contribuem mais para o obscurecimento desta
questão do que para o seu aclaramento:
“(…) E é bom não sermos excessivamente
puristas quanto à terminologia que usamos para falar desses três e dos muitos
outros seres inventados em cujo nome Pessoa escreveu, ou pensou escrever.
Segundo cremos, são os princípios que governam a heteronímia e as modalidades
do seu funcionamento que convém entendermos para uma melhor apreciação da obra
pessoana e até para a nossa própria edificação enquanto leitores ainda
dispostos a refletir e aprender.” (p.41).
O
segundo e último ponto, que julgamos valer a pena mencionar, surge ligado à
“estranheza”, de que nos fala Eduardo Lourenço[1] (2003: 27-28), provocada
por Pessoa não só no panorama das letras e da cultura nacionais, mas também
internacionais.
Talvez
esse efeito de “estranheza” seja, hoje, menor, porquanto o que há nele de
desajustamento possa atualmente compreender-se melhor do que no tempo em que
nasceu e viveu Fernando Pessoa. A sua proposta passa por uma questionação quer
do lugar do autor, quer da obra e quer, ainda, da linguagem utilizada, como
estando todos envolvidos num processo artístico complexo que conhece, também
ele desenvolvimentos e manifestações complexas mas que, apesar de tudo, não são
já, nestes dias, tão bizarros como antes. O próprio autor terá tido essa
consciência quando, num dos textos aqui reunidos, chama a atenção para o facto
de ainda estar por vir alguém igual a si e que aquilo que estava a viver também
outros iriam viver como sinais de um mundo em rápida transformação, fruto de
múltiplas e variadas metamorfoses próprias da velocidade e dessa impressão –
mais possível hoje do que outrora – de que se pode estar em vários sítios ao
mesmo tempo e da qual a internet é, porventura, o exemplo mais flagrante.
Portanto, Fernando Pessoa foi, como podemos confirmar, alguém que esteve
adiantado em relação ao tempo em que viveu e que terá conseguido, através do
processo heteronímico, um efeito de multiplicação e ampliação da personalidade
só provavelmente igualável aos mecanismos de expansão cósmica, o que o levou a usar
a já conhecida expressão: “Sê plural como o universo!” (p.133)
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