Santa
Iria de Azóia, 18 de Setembro de 2000 - Continuo a ler, interessadíssimo, o
romance Martin et Hannah de Catherine Clément. Martin é o filósofo
Martin Heidegger, indubitavelmente um dos espíritos mais brilhantes do séc. XX.
Hannah Arendt é uma intelectual judia, antiga aluna e amante do pensador
alemão. A outra personagem do triângulo amoroso é a legítima de Heidegger,
Elfride, que, apesar de quase tudo saber da duplicidade da vida amorosa do
marido, desde 1950, aceita disputar até ao fim não o papel de melhor amante,
mas o de melhor adjuvante na construção de uma obra filosófica.
Catherine Clément, inclemente com
Heidegger e sobretudo com Elfride, traça desta o retrato de uma mulher de
formação universitária que adere ao nazismo convictamente. Luterana, Elfride
continuava luterana de alma. Obstinada, de olhos abertos para a degradação da
Alemanha, para a cloaca de Berlim onde acabavam os detritos da República alemã.
Era preciso pôr fim a isto, reduzir a podridão a cinzas e regressar aos
verdadeiros valores de perfeição que Martin incarnava: o amor pelos cimos, a
neve límpida, a natureza, a saúde, o ar puro e o alto pensamento. Até aqui,
dir-se-ia que a legítima de Heidegger pugnava por valores perfeitamente
razoáveis. Quem, ainda hoje, não aceitaria os valores acima enumerados? O
problema era outro. Elfride não aceitava o fim do império austro-húngaro. A
República e a democracia eram as fontes de todas as enfermidades.
Principalmente, porque representavam o diktat dos vencedores e a
humilhação da Alemanha.
Vejamos como Catherine Clément não deixa
margens para qualquer ambiguidade: Do fundo do seu coração, Elfride esperava
a borrasca que varresse os miasmas da democracia. Limpa dos travestis
berlinenses, das prostitutas, dos comunistas, dos banqueiros, dos artistas. A
Alemanha purificada de judeus. Para varrer com a decadência, era preciso um
vento muito forte e selvagem. Esse
vento forte e selvagem era o “pequeno austríaco”. Ganharia eleições
democráticas em 1933 e instauraria o III Reich. Até aqui Elfride estivera
sempre à frente de Martin. Agora era o jovem professor que adere aos ideais
hitlerianos e aceita, ainda que só durante dez meses, uma reitoria.
Catherine Clément, professora de filosofia
com vasta obra publicada, parece, muitas vezes, condescendente com Heidegger.
Parece querer transferir o odioso da adesão do filósofo ao nazismo para a
pessoa de Elfride. Parece. Porque o mesmo Martin, pensador católico e
entusiasta de Hitler, afinal de contas, até tinha, desde 1924, uma amante
judia. Vou continuar a ler o livro.
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