XIX
Eu concebo a amizade como uma espécie de
religião, “sem deus e sem dia do julgamento final”, tal como esse grande
escritor marroquino de língua francesa, que dá pelo nome de Tahar Bem Jelloun.
De resto é mais ou menos assim o incipit
de ÉLOGE DE L’ AMITIÉ, um livrinho ao
qual regresso muitas vezes.
Bem sei que não concordarás totalmente
comigo no que à religião diz respeito, porque eras crente, ainda que não
ortodoxa. Podias ir à missa, mas também eras capaz de ouvir e até discutir com
cristãos evangélicos. Ou de outros credos.
A amizade nunca pode ser entendida como
uma troca de favores. Quem a entender assim, nunca fará parte do meu restrito
grupo de amigos. E é por isso, com certeza quase absoluta, que os meus amigos
rareiam. Os meus amigos são aqueles com quem gosto de estar ou que prezam a
minha companhia, mas a quem nunca peço ou concedo favores.
Sempre estive na vida de mãos limpas. E
assim quero estar até ao fim dos meus dias. Só assim serei um homem livre.
Passaram pela minha vida muitas pessoas. Muitas. E algumas, em situações
embaraçosas, pediram-me dinheiro emprestado. Nunca muito, que muito nunca tive,
mas o suficiente para “ficar a arder”, passe o plebeísmo da expressão, e deixar
de contar essas pessoas, até no meu grupo de conhecidos.
O mundo dos livros, por exemplo, é um
mundo dado a muitos equívocos. Aqui há cerca de dois anos, alguém com quem
cheguei a ter uma relação quase fraterna, quis que lhe reeditasse
um livro, quando, o que lhe tinha prometido era a edição de um livro de poemas.
Em princípio, que sim, um livro de poemas, e até já queria escolher a gráfica,
etc. Depois veio com a reedição de um romance. Disse-lhe
que não, que só estava na disposição de editar um livro de poemas. Até hoje. E,
vistas bem as coisas, ainda bem!
A amizade, repito, é também para mim uma
espécie de religião, sem deus e sem dia do juízo final. Como Tahar Ben
Jelloun.