domingo, 22 de setembro de 2013


O ESQUIM GRAVE
 

     O Esquim Grave, que ainda se encontra entre nós e de boa saúde, pertence à geração de naturais da Mata anterior à minha. Deve andar pelos setenta, mais um, menos um. E por isso mesmo, nunca jogámos à bola juntos, mas vi-o jogar muita vez. Chamavam-lhe o Torres, porque fugia um pouco àquela mediania rasteirinha dos homens da aldeia. Porém, as semelhanças com o chamado Bom Gigante prendiam-se apenas com a pretensa similitude de ambos em matéria de altura. Era como chamar Puskas ao João Passarinha.

     O Esquim Grave era de facto corpulento e interessava-se muito pelo fenómeno desportivo. E a necessidade, por míngua de jogadores, fez dele um jogador imprescindível. Jogava-se então à frente da capela de S. Pedro, sem balizas, sem quaisquer marcações, num pedaço de terreno irregular, com algumas oliveiras no meio. Seu irmão, o Tonho Grave, era guarda-redes, mas só de nome, porque nunca teve redes para guardar.

     O Esquim Grave, por quem tenho muita estima, sempre teve uma voz forte. Ainda hoje, quando este homem fala, ouve-se. Até a dar a salvação. Naqueles tempos de juventude, quando decorria a partida, que podia durar uma tarde inteira, a voz do Esquim Grave ouvia-se bem, porque era forte e tinha um timbre muito próprio: passa a bola, aí vai, segura, toma, boa, etc., eram palavras que todos podiam dizer, mas não daquela forma tão peculiar como ele as pronunciava.

     E o tempo foi passando e um dia arrumou definitivamente as botas, quer dizer as sapatilhas ou as botas normais dos dias normais, porque não havia equipamentos. Jogava-se com o que se tinha e as coisas eram divertidas, porque na mesma equipa podia haver jogadores com camisolas ou camisas das mais diversas cores. Os dois capitães escolhiam, à vez, do lote de futebolistas disponíveis, Onze para cada lado nunca, que o campo era pequeno e os jogadores poucos. Era um espectáculo! Sempre com muita discussão e muitos golos e, regra geral, sem árbitro!

     O Esquim Grave já era artista na construção civil. E na construção civil trabalhou muitos anos em Portugal e em França. Mais tarde tornou-se trabalhador agrícola por conta própria e alheia, usando, para o efeito, um tractor que, não há muitos anos, lhe ia sendo fatal. Também se dedicou à pastorícia. E nestas actividades, creio que ainda não arrumou as botas.  Um verdadeiro homem dos sete ofícios, mas do que eu queria mesmo falar era do Torres, que, apesar da falta de jeito, era um jogador imprescindível na equipa da Mata.

      

sábado, 21 de setembro de 2013


A BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA

 


     Às vezes, dou por mim a pensar nas cinzas da biblioteca de Alexandria e pergunto-me o que num só fogo perdeu a humanidade.

      Quantos séculos terá o mundo regredido por obra de um fogo? Esta é a pergunta clássica e inteligente, que todos os sábios fizeram.

      Há outra pergunta, talvez impertinente e talvez cretina, que ninguém ousou fazer: onde estaríamos hoje, se hoje ainda houvesse, sem o fogo de Alexandria?

 
TÃO LONGOS ERAM OS DIAS


 
 

Nas noites de verão,

Ficavam no poial.

Tão breve era a noite

Prò corpo descansar.

 

Era de sol a sol;

Era da convenção.

Tão ardente era o astro

Por conta do patrão.

 

Duro o queijo e o pão

Comidos com vagar.

Tão rápida era a sesta;

Nem dava pra sonhar.

 

Quando o dia acabava,

Depois do pôr-do-sol

Galhofeiros cantavam

A caminho de casa.

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

PESSOALÍSSIMO
 
 
Às vezes, sinto cansaço

desta correria vã.

Onde está meu corpo de aço,

que nunca dizia não?

 

O tempo é o TGV,

um ruído... já passou!

Quem te viu e quem te vê,

como o tempo te devastou.

 

AUTOBIOGRAFIA BREVE

 


Cheguei numa manhã de Junho, segunda-feira, e já o sol ia alto. Chovia. Esperavam-me, ansiosas, minha mãe e minha avó paterna.

     Cheguei, pois, em dia de sapateiro, como se dizia na minha aldeia.

     Cheguei gato-esfolado, contaram-me mais tarde; todavia, com muita vontade de me fazer à vida.

     Ao contrário de Daniel Abrunheiro, que daqui quero saudar fraternalmente, eu não cheguei atrasado. Cheguei a tempo, muito a tempo, para da vida ir colhendo múltiplas alegrias e tristezas, que ela é temperada com umas e outras.

     Cheguei a tempo de conhecer um país pequenino, que os próceres do regime, dirigido pelo beirão de Santa Comba, estendiam da parte mais ocidental da Europa até Timor. Era um Portugal miserável, triste e sem humor, do qual herdei esta perseverante e amarga ironia.

     Cheguei a tempo de conhecer o exílio e de saber quão amargo é viver longe da pátria, mesmo quando o afastamento resulta de uma decisão livre ou ditado pelo amor à liberdade; ou ainda, quando pela pátria nos é imposto. Oh, como eu compreende o imortal Ovídio!

     Cheguei a tempo de ajudar à festa e da festa me embriagar e da ressaca, que ainda vai teimosamente perdurando, apesar do vinho bebido não ter sido muito e nem sempre ser da melhor qualidade. Se preciso fosse repetir tudo de novo, tudo de novo repetiria (Por favor, não me macem com os pleonasmos)!

     E por cá vou andando, com a pele às costas, nada reclamando do amor e dos amigos. Da pátria sim, reclamo, porque sempre a quis mais livre e mais fraterna!

 

 

 

TI MANEL DA CRUZ
    

     É rara a vez que vou à Mata e não me cruzo com Ti Manel da Cruz, que, se ainda os não tem, deve estar muito próximo dos noventa anos. Habituei-me a vê-lo passar à nossa porta, ora a pé, ora montado na sua carroça. Tem sempre mais uma palavra que os simples boa tarde ou bom dia; e, por isso mesmo, tenho por ele estima e simpatia.
     “Ó João, hoje tens cá o teu Manel?”. Era uma constatação e uma pergunta retórica, porque eu estava ali à mão de semear. Mas dirigia-se primeiro a meu pai, um dos seus companheiros de sueca, no café de Manuel Domingos Barata, o Japona. E só depois, me dirigia directamente a palavra: ”Tás bom Manel, pois sim?”
     Ainda agora, já tão avançado na idade, continua direito que nem um fuso, em cabelo ou de chapéu na cabeça, sempre muito cordial e digno. O que já não tem, porque o tempo tudo traz e tudo leva, é força para pegar na bandeira e, com muito garbo, fazer toda a procissão. Foi voluntário para levar a bandeira, em todas as festas da Mata, desde que não houvesse promessa a cumprir ou que outro homem manifestasse o desejo de levar aquele adorno de difícil manuseamento, nos dias de festa com vento. Hei-de descobrir uma fotografia para ilustrar o que aqui fica dito.
     Nas cartas, gostava de ser parceiro de meu pai, mas também jogava contra ele. Nunca tive notícia de qualquer discussão de monta e preservaram a amizade até ao fim. Lembro-me de Ti Manel da Cruz passar e dizer: “Ó João, está cá o teu Manel, hoje não jogas?”. Meu pai apressava-se a sossegá-lo: “O meu Manel vai-se já embora. Eu já lá vou ter”. E ia, muitas vezes, ainda antes de eu partir. O gozo de puxar pelas orelhas às cartas falava mais alto, o que é compreensível, porque era o único entretém destes homens simples.
     Ti Manel da Cruz, a quem o povo alcunhou de Farinheira, ainda está para dar e durar. Se a saúde não lhe pregar nenhuma partida, é bem capaz de chegar aos cem. Oxalá que sim!

quinta-feira, 19 de setembro de 2013



NÃO SOU DESTA PATRIA



     Não, não sou desta Pátria. Agora que o Inverno se aproxima, quero um barco para voltar a Ítaca.

   Há vinte anos ausente, em alterosos mares perdido, embriagado de sol e de neblina, do amor de Calipso farto, quero ir para Ítaca na bolina e não é para ver os bordados de Penélope.
     Levai-me, ó fiéis marinheiros, levai-me para Ítaca, agora que o Inverno se aproxima veloz e inexorável! Levai-me para Ítaca, que Argos me espera e quero ver de novo campos de oliveiras e suaves colinas.

     Levai-me, ó fortes marinheiros, levai-me para Ítaca, que eu não sou desta Pátria!...

 

 

 



    

 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013


BENDITAS SEJAM AS NOSSA OLIVEIRAS
 

     Viram-te nascer e conhecem de cor os teus segredos. Foram a tua companhia, silenciosa e segura, durante centenas de anos.

     Deram-te sombra, nem sempre boa, é certo, nos tórridos dias do verão; a luz possível, antes do advento da eletricidade; o calor nos invernos, às vezes, tão longos e rigorosos; o tempero para a panela pobre, que tornava o feijão e a couve menos ásperos; o dinheiro para muitos dos restantes e indispensáveis bens.

     E como a generosidade foi recíproca, também é justo que não olvidemos o muito e aturado trabalho, e até servidão, que foram exigindo a sucessivas gerações.

     De qualquer modo, moldaram-te o carácter. Com elas aprendeste a mansidão e a austeridade. Por isso mesmo, nunca foste dada a sobressaltos e a paixões. Em toda a minha vida, apenas ouvi falar de um crime passional, perpetrado por um homem, a quem o amor de uma mulher não quis servir. Foi muito antes de eu ter nascido e já passei há muito pelos cinquenta.

     Benditas sejam para sempre as nossas oliveiras!

 

 

 

 

terça-feira, 17 de setembro de 2013


TI JOÃO BERNARDO
 

    Era pastor de rebanho próprio e tinha algum património; porém, o melhor património era a sua bondade pessoal. Era nosso vizinho e foi sempre meu amigo e da minha família; e, por isso mesmo, eu fazia-lhe os recados de boa vontade.

     Quando guardava o rebanho, quer na sua tapada, quer na tapada do senhor capitão, onde foi construído, ainda nos anos sessenta, o posto da GNR, ti João Bernardo chamava-me, dava-me a garrafa que trazia no bolso do casaco e dizia: ”Vai ali ao Prata e diz-lhe que a encha”. E lá ia eu, de garrafa na mão, para rapidamente a trazer cheia de vinho tinto do pipo. Era uma garrafa de meio litro, ou coisa parecida, que era o vinho que havia de beber antes do périplo pelas tabernas da Mata. Quando eu chegava, ainda antes de beber, ti João Bernardo oferecia: ”Dá aqui um golinho”. Invariavelmente eu dizia que não e lá continuávamos o brincar com a cadela, que se chamava Ligeira.

     Ti João Bernardo tinha várias laranjeiras de grande porte no terreno da horta e também uma tangerineira. Daí que tivesse sempre, na época própria, laranjas e tangerinas para me dar. “Vai lá outra vez encher a garrafinha”, dizia Ti João Bernardo, naquele seu jeito de boa pessoa.

     Às vezes, quando vinha com a fatia do pão para comer na rua e a talhadinha do  queijo, ou da morcela ou da farinheira, Ti João Bernardo testava-me: “ Deita aí a morcela à Ligeira, se queres ver que lhe cai o rabo”. Eu negava-me imediatamente e ambos ríamos.

     Bebia excessivamente e o excesso terá sido a causa da sua morte. Quando deslocava o seu rebanho para a tapada junto à chamada Quinta da Mata, fazia um percurso tal, que parava em todas as tabernas da aldeia para beber o seu meio quartilho de vinho. As ovelhas e a cadela, conhecedoras dos hábitos do dono, paravam à porta de todas as tabernas.

     Foi com Ti João Bernardo que me apercebi, muito cedo, da problemática da transumância. Conjuntamente com outros donos de rebanhos, procurava pastos na zona da serra da Gardunha, durante o Verão, regressando no Outono quando os campos começavam a verdejar. Eram meses difíceis de solidão e outras carências. Hoje, felizmente, o mundo é muito diferente e nunca mais voltará a ser como naquele tempo.

     Entregou a alma ao Criador, em 65 ou 66 do século passado. Hoje, seria ainda um homem novo. E se a memória não me atraiçoa, foi por alturas do S. João.

     Ainda hoje o recordo com imensa saudade.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013


TI ZÉ FERREIRO


     Ti Zé Ferreiro foi um dos dois ferreiros da Mata, que conheci na minha infância matense. E a alcunha Ferreiro colou-se-lhe de tal modo à pele, que nunca soube ao certo o verdadeiro apelido deste homem. É o único caso, na Mata, em que a alcunha condiz com a respectiva profissão. Tinha oficina na rua do Arrabalde, no espaço agora ocupado pela casa de Manuel Gazula.

     Andava sempre vestido com um macaco de agrim, que era assim que se chamava, na nossa terra, a uma espécie de ganga. Não teria muito trabalho como ferreiro; e, por isso mesmo, exercia também a profissão de ferrador. Colocava canelos às vacas e ferraduras a cavalos, machos e burros. E às respectivas fêmeas. Sempre sem pressas, mas muito metódico e eficaz, tratava de todas as bestas que viviam paredes meias com os habitantes da Mata e que muitas ajudas lhes prestaram durante centenas de anos.

     Ti Zé Ferreiro tinha uma estrutura com aberturas, onde os animais entravam para tratar das meias-solas. O artífice ficava assim protegido de eventuais coices, enquanto raspava cascos e pregava cravos nas patas das alimárias, a fim de fixar as ferraduras. E tudo se via da rua, porque a oficina teve sempre um aspecto decrépito, como quase todas as oficinas de ferreiro. Da rua se via também aquela pequena forja onde se incandescia o ferro para ser trabalhado.

     Era um homem alto e muito magro, que, apesar de ferreiro e ferrador, também ia cuidando da sua horta. Era pouco dado a permanências nas tabernas, apesar de ter fama de folião. Estou a vê-lo de cestinha ou de caldeiro no braço, quando ia ou vinha da sua actividade de agricultor. Tinha um potro, que o levava para o seu chão, ao fundo da rua do Espírito Santo, já muito próximo do lagar do Tomé.

     Lembro-me de Ti Zé Ferreiro, com outros homens, envolvido nas representações carnavalescas, os nossos “entrudos”, com vários intervenientes vestidos de forma andrajosa ou com roupas de mulher, através das quais se satirizavam situações mais ou menos burlescas ocorridas durante o ano transacto.

     Dele se conta que dizia ao filho, quando este chegava tarde a casa: “Ó Manuel, não achas que chegas tarde de mais a casa?”. Certo dia, quando o filho chegou já o sol tinha nascido e Ti Zé Ferreiro terá dito com graça:” Hoje chegaste cedinho, Manuel”. Verdade ou mentira, contava-se esta historieta.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013


O SENHOR PROFESSOR

Foto: João Leitão 

Era um homem forte e de altura mediana, tendo em conta os padrões da época. Foi militar e fez comissão em Moçambique, muito antes do início da Guerra Colonial, com o posto de tenente. Era um bravo, facto que lhe valeu o cognome de “Afonso Henriques”.

     Era um homem exacerbadamente patriota – esta justiça faço-lha sem quaisquer problemas -, que ensinou várias gerações de habitantes da Mata, aproveitando bem as circunstâncias de ser um homem instruído e de acordo com a Constituição 33.

     Não era dado a grandes pedagogias. Os alunos acabavam por adquirir conhecimentos repetindo as matérias ministradas vezes sem conta. E também através do uso de uma régua de madeira, que era uma ferramenta para a instrução e para a educação. Ainda me lembro da repetição dos verbos, à hora do almoço, em que cada aluno era um tempo e um modo.

     O senhor professor era também uma vigilante de boas práticas. Os alunos tinham que ir à missa e à catequese e não se podiam deitar tarde. E tinham ainda que ajudar na colheita da azeitona, na vindima e na apanha dos produtos da terra, no seu “Chão”, onde havia oliveiras, sobreiros e muitas árvores de fruto. Até maçãs reinetas!

     O senhor professor era um homem de humor muito variável, porque a senhora professora, sua senhora, era muito doente dos nervos; e, é bom de ver que uma mulher nervosa torna um homem instável. E ao contrário, creio, também é verdade. Almoçavam na escola, onde a criada trazia o almoço, e ali ficavam até ao fim das aulas. A limpeza da escola ficava a cargo dos alunos, porque não havia dinheiro para mais.

     Ainda me lembro do senhor professor a palitar os dentes com um aparo daquelas canetas de madeira de molhar no tinteiro. Se calhar ficava melhor dizer aparar os dentes, já que usava um aparo metálico. Mas fica assim e penso que se percebe.

     Eu também ia para o “Chão” do senhor professor e até para a “Lajinha” e para o “Barreiro Vermelho”. Era uma forma de complementarmos a nossa parte prática da aprendizagem para a vida. Era giro, muito giro, que durante o caminho o senhor professor perguntava: “Como se chamava a mãe de D. Afonso Henriques” e nós respondíamos em uníssono: ”D. Teresa”. E as perguntas sucediam-se até ao local dos trabalhos agrícolas.

     Acabámos incompatibilizados, porque o senhor professor, em 1969 me viu na execução de trabalhos da CDE (Comissão Democrática Eleitoral), no armazém do meu amigo Carlos Vale, na Rua J. A. Morão, em Castelo Branco. Tinha dezassete anos, a seguir emigrei e nunca mais voltámos a falar. E ainda bem!  

CASTELO BRANCO
 

 E havia aqueles dois senhores, que eram da PSP e trajavam à paisana: um era o senhor Pudico e o outro era o senhor Outro. Tinham por missão zelar pelos costumes e impor o respeitinho. Visitavam o subversivo Vidal, que vendia muita prosa vil e acolhia perigosos homens do contra: o alfaiate Matos Pereira, o industrial Armindo Ramos e o advogado João Vieira. E outros, que o quiosque estava licenciado e a entrada era livre.

O senhor Pudico usava gabardina, no Inverno, como o inspector Colombo de uma série televisiva, e chapéu todo o ano, por respeito à convenção. O Outro, já não me recordo se tinha gabardina, mas também usava chapéu. E óculos para poderem ver melhor os títulos subversivos, que um tal Vilhena teimava em publicar: O Filho da Mãe, Marmelada, A Vaca Borralheira, As Canetas dos Amantes, etc. E quedo-me por aqui para não alongar o rol.

O senhor Pudico e o senhor Outro, que levavam a sua nobre missão a sério, eram pessoas muito sós, porque, lá bem no fundo, só se tinham um ao outro. A cidade olhava-os com desdém, porque o senhor Pudico e o senhor Outro eram o retrato vivo da vigilância, num país vigiado até nas coisas mais simples e íntimas.

 O senhor Pudico e o senhor Outro não liam livros. Apreendiam livros. O senhor Pudico e o senhor Outro não conversavam. Ouviam conversas O senhor Pudico e o senhor Outro não viviam, andavam por ali, enquanto a cidade vigiada trabalhava, lia e conversava.

 in "AO SABOR DOS DIAS", no prelo.

 

terça-feira, 3 de setembro de 2013


A RUA DE SANTO ANTÓNIO
 
 
 

 Era nas águas-furtadas a nossa casa. Era velha e com poucas condições, mas tinha uma claraboia, por onde, quando havia, entrava a luz do sol. Era no número vinte e um da rua de Santo António, quase no coração da cidade. No rés-do-chão, era a mercearia do senhor António Canaveira.

 Em frente, havia uma agência de viagens, onde trabalhava uma rapariga vistosa, com quem, na solidão dos meus pensamentos, fiz as primeiras grandes viagens. Era uma rapariga alegre, que vestia roupas alegres e tinha um sorriso alegre e branco e amplo e um corpo ágil de gazela. Um dia a agência fechou as portas e a rapariga mudou de ares, qual ave de arribação. Se me tivesse pedido, apesar da idade, creio bem que tinha partido com ela. Ah, como batia forte e apressado, naqueles dias, o meu pobre coração!

E o tempo, esse inigualável fazedor, fluía placidamente. Placidamente, que é assim que deverá fluir o tempo. E tudo era normal e rotineiro, até a passagem diário do batalhão, o seis de caçadores, que passava na rua de Santo António ao som do tã…tão…tã-ta-ra-rã dos tambores e do op, dois, erdo, direito dos cabos milicianos.

A nossa casa era nas águas-furtadas do número vinte e um da rua de Santo António e era a foz de um rio de gente que ali vinha pedir um pequeno favor, como visitar, no hospital, um doente ou comer um simples prato de sopa.

Aquelas águas-furtadas eram a casa da gente.

 

  
in AO SABOR DOS DIAS, no prelo.
 

TI JAQUIM AMARO (CABEÇUDO)

 


     Veio dos Escalos de Cima para casar rico na Mata. E na Mata ficou até ao fim dos seus dias. Nunca conquistou a simpatia do povo, que o alcunhou de “Cabeçudo”. Casou rico, dizia-se, mas nunca deixou de trabalhar, apesar de ter muito de seu, comprado ou herdado. Era um homem baixo e forte, que usava invariavelmente calças com peitilho e alças.

     Teve popó, camionetas e outros veículos a motor, moagem de cereais e até parte num lagar de azeite, como se diz na Mata. E teve uma loja de aldeia, onde se vendia de tudo, desde bacalhau e toucinho, até petróleo e tecidos. Antes da chegada da electricidade teve um petromax, do qual falarei mais à frente.

     Genro de Ti António Tomé, que apesar de ter muitos bens nunca lhe foi outorgado o tratamento por senhor, porque esse tratamento estava reservado aos mais ricos, já ricos de berço, e também ao professor primário e ao senhor capitão, que chegou postumamente a coronel e que depois de morto ainda havia de protagonizar uma das cenas que mais me marcaram. Ti Jaquim Amaro era tratado das duas maneiras: Ti Jaquim e senhor Jaquim. Presumo que esta indecisão radicava no facto de não ter nascido na nossa terra.

     Eu tive sempre uma boa relação com o Ti Jaquim Amaro, vá lá saber-se porquê, e conversámos muito ao longo da vida, sentados no poial que havia à porta da sua residência e da sua loja. Também era naquele poial que por vezes se sentava o senhor Francisco Melo, o homem mais rico da aldeia, pai do único general que a Mata deu à Pátria. E ambos falaram muito da emigração, que viria a pôr em causa o seu mundo próspero, que assentava na abundância de mão-de-obra barata.

     Certo dia, ou para ser mais preciso, certo fim de tarde, fui fazer um recado à minha mãe, quando Ti Jaquim Amaro se preparava para acender o petromax. Era um processo lento, que consistia no aquecimento de uma camisa, que, uma vez ateada, daria luz para o resto do serão. Eu olhava atentamente para o petromax, que em minha casa não havia, e o nosso merceeiro disse-me, como que prevendo, o que se passaria a seguir: “Vou ali buscar… não mexas na camisa do petromax”. Mal voltou as costas, a medo, aproximei o dedo da camisa branca, ainda não acesa e zás!

    Desfeita a camisa, lá me foi intimidando: “Diz à tua mãe para vir falar comigo, para me pagar a camisa”. Meio atarantado pedi desculpa, paguei o que comprara e fui cabisbaixo para casa e contei o sucedido a minha mãe. E tudo se resolveu sem quaisquer problemas. Deste acidente falámos muita vez, mas sem quaisquer ressentimentos, porque, na verdade, gostávamos um do outro.  

    

    

segunda-feira, 2 de setembro de 2013


TI CHICO MELGO

 


      Morava ao cimo da minha rua e foi sempre um vizinho exemplar. Tinha uma forma muito própria de pisar o chão, o que me faz pensar que teria dado um excelente bailarino. Sempre muito magro, quando sóbrio e com o fato domingueiro vestido, era um homem elegante.

     Durante a semana trabalhava e não exagerava no álcool. Saudava as pessoas com sobriedade e com um sorriso amigo. Recordo-me bem do sorriso fino e maroto de Ti Fcisco Melgo - sim, Fcisco, porque na Mata sempre houve a tendência para suprimir fonemas às palavras ou para certas corruptelas -, ao cruzar-se comigo ou com as demais pessoas.

     Este homem trabalhador e pacífico, quando ingeria álcool em excesso, sofria uma transfiguração radical: energia desmesurada, correrias, vernáculo do mais puro e duro. Nas tardes de domingo ou quando regressava de Castelo Branco, quando à cidade tinha que se deslocar, já bem bebido, tinha o seu quê de mefistofélico. A malta nova, que lhe conhecia a natureza do vinho e da aguardente, provocava-o com um som idêntico ao emitido pelos bodes. Ti Fcisco Melgo corria de um lado para o outro, dizendo todo o tipo de impropérios, que, sei bem. O leitor não terá dificuldades em adivinhar.

     Quando regressava embriagado de Castelo Branco, ria-se, gesticulava, corria atrás da pequenada; as mulheres, todas muito pundonorosas, fechavam-se em casa, mas ficavam de ouvido bem atento aos desmandos verbais de Francisco dos Santos, que era este o nome e o apelido de registo e baptismo.

     Numa noite de Inverno, perante a chuva de impropérios, o cabo da GNR, Marcos Sobreiro de seu nome, quis levá-lo para o posto da dita GNR para lhe dar amoníaco a cheirar, porque o amoníaco faz espirrar e acelera o efeito do álcool. Ti Fcisco Melgo, com uma graça quase infantil, responde ao cabo, com o seu sorriso escarninho: “Leve-me às costas, senhor cabo, que é o mesmo que dizer, leve-me às cavalitas. É óbvio que ninguém resistiu a uma boa risota.

     Morreu um pouco como viveu. Numa noite de Inverno, com muita aguardente no corpo. Ficou na rua e o frio não lhe perdoou. Mas perdoo-lhe eu, caro leitor, que este homem, que tocava harmónio, acabou por dispor bem muitas gerações de gente da Mata. Se fosse possível, gostava de lhe enviar um sorriso, para lhe agradecer a alegria que tantas vezes a todos proporcionava.