quinta-feira, 11 de outubro de 2012

DO MEU DIÁRIO


Santa Iria de Azóia, 27 de Janeiro de 2007 – É evidente que este DIARIO não é uma espécie de conta-corrente de leituras. E no entanto, até eu penso que se fala muito de livros e de autores neste meu pobre confessionário.
     Eu tenho dividido a minha vida de adulto, ainda que em partes desiguais, por três áreas: a profissional, no reino dos impostos; a outra profissional, ensinando em horário pós-laboral; e a lúdica, à volta dos livros. É pois natural que os livros ocupem aqui um espaço importante.
     Li com muito interesse As Pequenas Memórias de José Saramago, ou seja, com o interesse com que já tinha devorado os Cadernos de Lanzarote e todos os romances até a A Caverna. E atribui-lhe o prémio Nobel, nas páginas do meu Diário, mesmo antes da Academia de Estocolmo. Porém, depois de 98 falou-se tanto de Saramago e Saramago de si mesmo, que passei anos sem ler de ou escrever sobre o nosso prémio Nobel.
     Dir-se-ia que As Pequenas Memórias são isso mesmo, as pequenas memórias de um garoto que viera da aldeia para a Lisboa, “quando ainda não tinha dois anos.” Porém, à aldeia há-de voltar amiúde, na infância e na adolescência, para junto dos seus avós maternos, Jerónimo e Josefa.
     O pequeno José de Sousa – Saramago por acaso, que o destino tem destes caprichos -, dá-nos conta do modo como ocupava o tempo, ora descobrindo os recantos do Almonda e do Tejo, ora ajudando nas tarefas da pecuária familiar. Vale a pena recordar a passagem da limpeza da pocilga. Quando começou a chover, o “Zezito” preparava-se para abandonar o trabalho; porém, o avô disse-lhe que tarefa que se começa, se leva até ao fim. E se dela falo aqui e agora, é porque esta história tem tudo a ver com a formação de um carácter. Foi por esta e por outras que, muito provavelmente, Saramago se tornou um homem perseverante e rigoroso.
     Na vida citadina de Saramago, impressionaram-me muito aquelas mudanças de residência. E sobretudo, o viver em comunidade, isto é, na mesma casa com várias famílias, num despojamento completo de espaço e objectos. Penso que Saramago nos traça ao longo destas memórias um retrato rigoroso da miserável Lisboa popular dos anos vinte.
     Numa última nota, quero observar que Saramago demonstra grande distanciação pela figura do pai, agente da polícia, que não seria propriamente um modelo de virtudes. E talvez aqui esteja a explicação para uma permanente valorização de figuras femininas: Blimunda, Lídia, Gracinda Mau-Tempo e tantas outras.


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